Temporão: Bolsonaro e SUS fragilizado criam ‘tempestade perfeita’ para agravar pandemia
Para o ex-ministro, o discurso negacionista venceu, ao reduzir o espaço político para o isolamento social | Matéria de Gabriel Vasconcelos publicada originalmente no Valor Econômico — Rio
A proximidade dos dez milhões de casos de covid-19 pouco mais de um ano depois da primeira infecção registrada no Brasil se deve aos erros do governo Jair Bolsonaro, mas encontraram terreno fértil: um Sistema Único de Saúde (SUS) dependente do mercado internacional e financeiramente fragilizado após quatro anos de teto de gastos. O diagnóstico é de José Gomes Temporão, que foi ministro da Saúde entre 2007 e 2010.
Em balanço do que foi a pandemia até aqui, o médico sanitarista disse ao Valor que o discurso negacionista venceu, ao reduzir o espaço político para o isolamento social, cuja impopularidade é um risco que governante nenhum está disposto a encarar. Nesse cenário, afirma, remendo fortuito seria diversificar ao máximo o quadro de vacinas para alcançar um mínimo de imunidade de rebanho.
Nas contas de Temporão, que tem uma campanha de vacinação contra o H1N1 no currículo (2010), os números só começarão a cair drasticamente quando cerca de 90 milhões de brasileiros estiverem imunizados.
“Pela experiência, era possível que esse país alcançasse essa marca até abril, mas não houve preparação lá atrás, por volta de julho, quando os países começaram a se posicionar em torno das vacinas. Considerando o ritmo que imprimimos em 2010, durante o H1N1, poderíamos ter hoje [15 de fevereiro], 20 milhões de pessoas vacinadas e não só 5 milhões“, afirma.
Preparada com rigor, como outras campanhas do PNI, a investida contra o H1N1 há dez anos imunizou 90 milhões de pessoas em três meses, média de 30 milhões por mês. Em que pese a escassez de vacinas no mercado internacional, o desempenho desejável ficou ainda mais distante porque o governo demorou meses para sentar à mesa com laboratórios, rechaçou ofertas interessantes e não abriu o leque de fornecedores, diz Temporão.
Por telefone, de sua casa no Rio, o ex-ministro analisou o cenário brasileiro, como se visualizasse uma apresentação à frente. Resultado, talvez, das seguidas declarações à imprensa e da presença assídua em comitês científicos montados por dois governadores e prefeitos, mas cujos membros eram pouco ou nada escutados.
Por vezes, como na primeira versão montada pelo governador afastado Wilson Witzel (PSC), frustrados, Temporão e outros notáveis se afastaram sem fazer alarde. Na conta, alternância de secretários com diferentes orientações e, do outro lado da mesa, o lobby de empresários que não podiam ouvir falar em lockdown, mostra regional do que seria potencializado no Planalto na condução nacional.
“O presidente da República e seu ministro [Eduardo Pazuello] reescreveram a história dessa doença no Brasil. As escolhas erradas no combate à doença, a omissão em momentos chaves e o discurso negacionista que criou um entendimento equivocado sobre a doença na sociedade tiveram um papel central nas pouco mais de 240 mil mortes registradas até aqui e as mais de 260 mil esperadas até o fim de março“, diz.
No enfrentamento à doença, Temporão afirma que, de forma geral, o SUS descoordenado errou ao apostar todas as fichas unicamente no aumento de leitos e esquecer o potencial da atenção básica e da saúde da família para testar e isolar contaminados e seus contatos.
“É como se tivéssemos esperado as pessoas adoecerem para interná-las de forma resignada, sem tentar frear a disseminação do vírus”, diz. “O Brasil tem mais de 40 mil equipes de médicos da família, cerca de 250 mil agentes comunitários de saúde. Em vez de utilizar essa estrutura capilarizada e treinada, escolhemos focar unicamente na abertura de leitos. As duas coisas deveriam ter sido feitas em paralelo“, continua.
Ele acrescenta que o país nunca conseguiu promover um lockdown eficaz, como o realizado na Europa, que quebrou efetivamente a circulação do vírus em duas ondas, permitindo períodos com nível de contaminação próximos a zero. “Aqui a velocidade de disseminação [do vírus], mesmo quando recuou, se manteve muito alta ao longo de todo o ano. Agora, com a disseminação da variante genética de Manaus, isso tende a se manter como está ou piorar“, diz.
Sobre novas medidas de isolamento, ele diz que, infelizmente, há pouco espaço político. “Isso fica claro na atitude dos governantes, prefeitos e governadores. Excetuando-se o prefeito de Belo Horizonte [Alexandre Kalil (PHS)], todos os outros se mostram reticentes a fechar de novo. A percepção que se tem é que o negacionismo de disseminou de tal maneira que medidas drásticas como um lockdown seriam de uma popularidade insustentável. O que se vê, portanto, são aglomerações por todo o Brasil com mais de mil pessoas morrendo todos os dias. Tudo isso é muito triste, e também mostra um lado muito tenebroso da cultura brasileira dos nossos dias“, afirma Temporão.
Aos erros iniciais, dourados pela proposição de métodos negados pela ciência — como o incentivo e os aumentos das compras públicas de cloroquina e ivermectina — Temporão soma a recusa à coordenação nacional da crise, marcada pelas justificativas de Bolsonaro de que o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a autonomia de Estados e municípios na gestão da crise.
O especialista menciona, ainda, as dificuldades estruturais do SUS e da pesquisa tecnológica no país. “A pandemia chega e encontra pela frente um SUS ainda organizado, mas muito fragilizado do ponto de vista financeiro e político.”
Temporão diz que a Emenda Constitucional nº 95, ao criar um teto de gastos por 20 anos e ser aplicada à Saúde, levou ao fechamento de leitos, desligamento de profissionais terceirizados e aumento das desigualdades regionais do sistema. Norte e Nordeste ficaram ainda mais desguarnecidos e as capitais também concentraram mais tecnologia hospitalar e recursos de custeio em detrimento do interior dos estados, afirma Temporão.
“As desigualdades do SUS, que sempre existiram, aumentaram muito em quatro anos de perdas” no investimento”, afirma.
Sem recursos e desprestigiado politicamente dentro do governo desde então, o sistema apresentava fraquezas que facilitaram a trajetória do vírus no país. “A verdade é que, desde 2016, os ministros da Saúde atuaram contra o SUS, sem o compromisso de fortalecer a saúde pública. A exceção foi [Luiz Henrique] Mandetta, que no enfrentamento da pandemia buscou seguir a ciência”, diz.
Foi consequência direta do enfraquecimento institucional, mas também de erros estratégicos de administrações anteriores. Ele cita a “extrema dependência externa” que se criou de insumos farmacêuticos e de equipamentos de saúde de média e baixa complexidade. E diz que o único momento da saúde pública em que o país implantou uma política de redução da dependência externa nas indústrias da saúde, foi na gestão dele, no governo Lula.
“A vulnerabilidade foi tamanha, que não tínhamos EPI [equipamento de proteção individual] suficiente no país, quem dirá testes e ventiladores [pulmonares]. E essa fragilidade não para de se fazer presente. Agora também não temos como produzir os princípios ativos das vacinas, mesmo sendo um dos países com os dois laboratórios mais consequentes na área [Fiocruz e Butantan]. Isso coloca uma dimensão estrutural ao problema, que pode ser resolvido mediante investimento pesado em um projeto nacional de autossuficiência em saúde”, diz Temporão.
O ex-ministro, no entanto, é pouco otimista nesse sentido. A despeito de importantes investimentos pontuais em infraestrutura, como no Complexo Industrial de Saúde da Fiocruz, previsto para operar comercialmente em 2025, ele menciona a trajetória de cortes no orçamento da ciência no governo Bolsonaro no momento em que o mundo redobra os investimentos no setor.
“É, de fato, uma tempestade perfeita: a incitação ao mau comportamento da população e a inoperância de um governo que se renovam desde a saída do Mandetta e que encontram problemas estruturais. Não é mesmo à toa que o Brasil é o último país do ranking australiano [de 98 países do think tank Instituto Lowy] na gestão dessa crise”, constata Temporão.”