Tratamento à base de tortura
Correio Braziliense – 29/11/2011
Durante vistorias em 68 comunidades terapêuticas espalhadas pelo país, psicólogos encontraram pacientes que são surrados com pedaço de madeira e vítimas de cárcere privado
Cavar uma cova da dimensão do próprio corpo, escrever reiteradamente o Salmo 119 da Bíblia ou ser surrado com um pedaço de madeira em que está escrita a palavra gratidão são algumas das terapias oferecidas a usuários de drogas em tratamento no país. As violações estão documentadas no relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos, uma pesquisa realizada periodicamente pelos conselhos regionais de psicologia sob a coordenação da entidade federal da categoria e com o apoio de parceiros, como o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil. Em todos os 68 locais de internação para tratamento de dependentes químicos visitados, especialmente clínicas e comunidades terapêuticas, houve flagrantes de desrespeito. Entre os problemas mais frequentes estão isolamento, proibição de falar ao telefone com parentes, trabalho não remunerado e punições físicas e psicológicas para atos de desobediência.
As denúncias, que serão levadas à ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, surgem a uma semana do lançamento oficial de um plano de combate às drogas, quando a presidente Dilma Rousseff anunciará a inclusão das comunidades terapêuticas na rede de tratamento, com financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). “Não nos deram a oportunidade de participar do debate sobre esse plano, ao contrário de outros segmentos da sociedade. A simples possibilidade de financiar tais instituições já representa um retrocesso em tudo o que a reforma antimanicomial conquistou”, disse Clara Goldmann, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia. Ao destacar que encaminhará o documento à ministra, o ouvidor Nacional dos Direitos Humanos, Domingos Sávio Dresch da Silveira, destacou as medidas cabíveis. “Vou conhecer o relatório e, havendo indícios de violações, caberá um procedimento coletivo de apuração”, disse.
Casos de locais já investigados pelo Ministério Público, como a Casa de Recuperação Valentes de Gideão, em Simões Filhos, na Bahia, apresentaram problemas graves, como espaços inadequados e até exorcismo para tratar crises de abstinência. “É assustador que o clamor por tratamento silencie até mesmo a voz de autoridades que já foram notificadas, quatro anos atrás, sobre o tratamento desumano. Não estou dizendo que todas as comunidades terapêutica têm esse padrão, mas assusta ver a Valentes de Gideão aberta”, destaca Marcus Vinícius de Oliveira, integrante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.
Para o diretor da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), Maurício Landre, a amostra considerada pelo relatório é tendenciosa e não representa o universo das instituições. Ele também questiona a competência dos conselhos regionais de psicologia para fazerem inspeções. “É lamentável que uma classe tão conceituada, com profissionais que realizam trabalhos extraordinários dentro de comunidades terapêuticas, faça denúncias tão irresponsáveis”, afirma. “Existe comunidade terapêutica, clínica e até hospital que deve ser fechado? Existe. Mas não se trata de todos. Vamos ajudar na capacitação, vamos trabalhar em vez de ficar reclamando”, afirma. Segundo o dirigente, a real intenção com os ataques é financeira. “Tem a ideologia e também o capitalismo. Tratar em comunidade é mais barato do que ficar fazendo redução de dano, que eles defendem.”
Ligações monitoradas
O tema escolhido para a inspeção deste ano foi álcool e drogas. Só não foram feitas visitas em Amapá e Tocantins. No DF, a única instituição que participou foi a Fazendo do Senhor Jesus, em Brazlândia. O monitoramento de ligações dos familiares, bem como de visitas, é um ponto criticado no relatório. A violação das correspondências trocadas pelos pacientes também foi destacada no documento. Além disso, há relato de um homicídio e de uma denúncia por cárcere privado.