Um subministério faz mal à saúde
LIGIA BAHIA (*)
Seria incorreto medir o potencial de cumprimento da promessa de conduzir o Brasil para “uma saúde de primeiro mundo”, feita pela futura presidente, apenas pelo tamanho e a natureza de dois recentes eventos dedicados a debater os destinos do Ministério da Saúde. Mas parece imprudente deixá-los de lado, já que a divulgação de ambos se deveu precipuamente ao comparecimento de Dilma Rousseff, dos possíveis candidatos a ministro da Saúde e seus apoiadores. Houve um esforço para construir consensos e dar voz àqueles que poderão contribuir e se responsabilizarão por traçar minuciosamente a rota que conduzirá o país ao destino anunciado.
A primeira reunião, de caráter mais restrito, foi organizada por médicos, de um grande hospital filantrópico paulista responsável pelo atendimento do atual presidente, do vice-presidente e da próxima presidente. A segunda, convocada por membros da equipe de transição, ocorreu em Brasília. Esta contou com a participação do ministro Temporão, do ex-ministro Jatene, proprietários e executivos de estabelecimentos hospitalares, entre os quais integrantes do encontro anterior, de empresas de planos e seguros de saúde e da indústria farmacêutica. Como as notícias sobre ambas enfatizaram mais os personagens do que as ideias, ficou a impressão que a boa performance do Ministério da Saúde dependerá antes da atuação do elenco, especialmente do protagonista, do que da qualidade do script.
Possivelmente, as luzes jogadas sobre os nomes para ministro da Saúde e respectivas vinculações, pessoais e político-partidárias, dos mais cotados com os influentes reorganizadores do diagrama do poder, ofuscaram interpretações acessórias sobre os encontros. Faltou saber quais são as alternativas para equacionar e redirecionar os rumos do sistema de saúde. Não vieram a público as respostas às incógnitas relacionadas com as definições de como, quando e quem resolverá os problemas que impedem nossa aproximação a uma saúde de “primeiro mundo”.
Coletar declarações de colaboradores para resolução dos problemas de saúde de segmentos diretamente envolvidos com a prestação de serviços de saúde é um passo importante. Mas a maior aproximação desses agentes e seus interesses aos centros decisórios do governo não garante melhores níveis de saúde. As virtudes para efetivar direitos universais à população não são necessariamente as mesmas requeridas para a conquista de espaços de poder.
Assim, os esforços reunidos até aqui, ainda que bem intencionados, parecem insuficientes para deslocar o Ministério da Saúde da periferia do núcleo de governo. As declarações dos futuros governantes sobre a inexistência de recursos financeiros adicionais e o confinamento da política de saúde ao perímetro restrito de uma coalizão interna ao setor inviabilizarão mudanças estruturantes. Se não forem devidamente filtrados e projetados para um horizonte mais amplo, o atendimento de interesses financeiros e comerciais dos vendedores de insumos e serviços e demandas corporativistas seguirão interditando o direcionamento democrático e republicano da política de saúde. Quem pretende obter uma “saúde de primeiro mundo” não pode prescindir da inclusão de segmentos que vocalizam valores igualitários nas arenas decisórias. Fóruns especializados e acanhados estimulam a circulação colateral de pactos privados e privatizantes.
Estudos realizados em países europeus e nos EUA admitem que o estado de saúde das populações depende de investimentos setoriais. Um incremento de 10% na esperança de vida ao nascer acompanha-se de um aumento de 0,3 a 0,5 pontos na taxa de crescimento da economia. Reconhece-se ainda os relevantes efeitos das atividades produtivas da saúde, especialmente pesquisa e desenvolvimento de ciência e tecnologia. Assim, a organização de sistemas de saúde de “primeira” mantém-se associada ao sentido da dinâmica econômica. Os gastos sociais não são considerados antagônicos à modernização e ao desenvolvimento. No Brasil, os avisos sobre os cortes de gastos e o abandono das tentativas de ressuscitar a CPMF irão dificultar muito o pagamento da promessa da presidente. Porém, não existe uma única alternativa de saída. Os atuais constrangimentos orçamentários não justificam a desoneração do governo da tarefa de imprimir direção política ao sistema de saúde brasileiro e muito menos transformar o dito no não dito. Os obstáculos para obter recursos financeiros não são exatamente da mesma ordem daqueles concernentes à mobilização política. A instituição encarregada de liderar a marcha para a “saúde de primeira” não pode ser um ministério de segunda.
(*) LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro