Uma doença no Estado democrático de direito
Por Tatiana Lionço, doutora em psicologia e professora da UniCEUB
Existem chagas na democracia. O fundamentalismo na política é uma ferida no processo de democratização no Brasil. O avanço de discursos religiosos no âmbito legislativo tem servido para retroceder nos direitos humanos e nos direitos sexuais e reprodutivos, tendo reverberado negativamente no contexto das políticas públicas. Vetos a materiais educativos e preventivos destinados ao enfrentamento da homofobia também ganharam o aval da Presidência da República e de ministros dos setores educação e saúde.
Especialmente na saúde, os ataques do fundamentalismo vem instaurando a perspectiva de um obscurantismo que se tornou sinônimo da retomada do modelo hospitalocêntrico e focado no lucro com a doença que buscamos superar desde a Constituição Federal de 1988. A patologização da homossexualidade e do usuário de drogas vem sendo reificadas por meio da instauração de um pânico social associado à moralidade patriarcal e à defesa da sociedade contra aqueles considerados indignos e que incorreriam em afronta à família e à ordem social, legitimando violências reais e simbólicas por meio do véu dos novos tratamentos propostos.
A patologização e criminalização do usuário de drogas e das pessoas que não correspondem à moralidade sexual e de gênero cristã e patriarcal tem sido a estratégia adotada pelos fundamentalistas. Os drogados, os pervertidos e as vagabundas merecem cadeia ou tratamento correcional. Pouco se questiona os sofrimentos e penúrias vivenciados pelas pessoas que recorrem às drogas e ao tráfico como meio de sobrevivência psíquica e social, bem como não há alarde em relação à violência e ao abandono que cercam a vida de mulheres que porventura engravidam. Pouco cuidado vem sendo expressado nas intenções de regulação legal do tratamento a ser conferido a estas pessoas.
O Sistema Único de Saúde corre um grande risco de retrocesso hoje devido à incidência do fundamentalismo nas decisões do poder executivo sobre as políticas públicas. Temos acompanhado notícias do financiamento público de instituições privadas e manicomiais para acolherem usuários de drogas ilícitas; a banalização de sua internação involuntária e compulsória sob a justificativa de que apresentam risco à sociedade; a intenção de estender esta estratégia de tratamento moral à homossexualidade, entendida como desvio da sexualidade; o silenciamento sobre discussão de práticas sexuais e consequente comprometimento da qualidade das estratégias de prevenção ao HIV/Aids; a tentativa de exterminar legalmente os poucos serviços de atenção humanizada ao aborto legal que sequer garantem hoje o direito de as mulheres interromperes a gestação quando houver o excludente penal do risco de vida e/ou estupro.
A aprovação da lei do ato médico é o principal retrocesso no SUS. Formaliza a legalidade da violação do princípio da integralidade na assistência. Decidindo pelo não cumprimento desse princípio ético e político, o Congresso Nacional mina a implementação do novo modelo de atenção à saúde instituído com a democratização, formalizado tanto no próprio texto constitucional como pela lei orgânica da saúde. O ato médico é uma afronta à democratização e ao reconhecimento da saúde como um direito social, é uma afronta a diversas categorias de classe profissionais e uma afronta ao direito das pessoas a serem cuidadas na particularidade de suas demandas e condições. O ato médico patologiza e criminaliza a saúde pois reduz vidas a doenças e rebaixa os demais cuidadores a possíveis subordinados e/ou violadores da ordem médica.
Embora afirme-se que o fundamentalismo religioso atravesse a política no país, há reticências em fixar o qualificativo deste fundamentalismo na religiosidade. O discurso religioso tem insistido na argumentação pública de uma parcela de parlamentares, embora o fundamentalismo religioso exija a adoção de doutrinas religiosas como norteadoras da inteligibilidade sobre a vida social e o que ocorre não é a proliferação de discursos de evangelização ou de recuperação das principais teses do evangelho, mas tão somente o uso da autoridade religiosa para a legitimação de discursos políticos. Isso leva à afirmação de que o suposto fundamentalismo religioso seja um fundamentalismo de direita que de modo oportunista recorre à transcendência para recusar o debate democrático e coletivo sobre assuntos sociais.
O que nós precisamos discutir e que fazemos questão de que chegue ao conhecimento de todos os poderes públicos é que consideramos que os projetos que tramitam no Congresso Nacional e as decisões já assumidas no poder executivo são arbitrárias e violadoras dos direitos das pessoas a tratamentos dignos e à consideração dos seus interesses. Estão decidindo rumos da saúde baseados em interesses privados e alheios ao impacto das medidas em curso sobre a vida concreta das pessoas atingidas pela característica das novas políticas instituídas ou em vias de regulamentação.
Esta doença, a arbitrariedade na tomada de decisões políticas, é uma chaga aberta na democracia no Brasil. Trabalharemos e lutaremos pela recuperação de nosso Estado democrático de direito. Permaneceremos defendendo os serviços de acolhimento, acompanhamento e tratamento das mulheres vítimas de violência sexual, insistiremos na reforma psiquiátrica e seguiremos, as diversas categorias de profissionais da saúde, explicitando o modo como entendemos que devemos trabalhar para fazer da saúde um campo para a promoção da justiça social.
Nosso compromisso é com a democracia e com o pacto social que firmamos na assembléia nacional constituinte de 1988. Nossa principal demanda é que nossos representantes nos poderes públicos se fiem na constituição federal em suas tomadas de decisão. Pedimos que iniciem o tratamento da doença política que é o fundamentalismo por meio da retomada imediata dos princípios constitucionais nas decisões que envolvem a saúde pública no Brasil.
Publicado em 26/6/13