Universalidade, igualdade e integralidade da Saúde: um projeto possível
Agenda Política e Estratégica Para a Saúde
Belo Horizonte, 03 de outubro de 2013
As manifestações que se iniciaram com o Movimento pelo Passe Livre em São Paulo estenderam seus pleitos para reivindicações por serviços públicos de qualidade para os brasileiros, principalmente nas áreas de transporte, educação, segurança e saúde. Fruto, em parte, das melhorias sociais conquistadas na última década, essas manifestações revelam que os brasileiros não estão satisfeitos com o que já conseguiram e querem condições de vida mais dignas para todos.
Diante da resposta do governo federal, alegando a necessidade de aumento da receita da União para atender aos diversos pleitos, as entidades do movimento social questionam a alocação dos recursos públicos em encargos da dívida pública e em políticas compensatórias não estruturais, assim como a regressividade do sistema tributário que faz com que os mais pobres paguem mais e tenham menor acesso aos descontos proporcionados pelas desonerações fiscais na saúde, na educação e também nas destinadas ao incentivo ao consumo de carros e eletrodomésticos. Todo esse estímulo ao consumo elevou o acesso a certos bens, mas não acrescentou muito à qualidade de vida da população em relação aos direitos sociais à saúde, educação, transporte e segurança.
O movimento por que passa o Brasil insere-se claramente em um novo contexto internacional. Na América Latina, na última década, assiste-se, de maneira geral, a adoção privilegiada de políticas de transferência de renda dirigidas aos pobres e muito pobres. Com exceção do ocorrido no Brasil em 2003, houve uma interrupção no processo de privatização da aposentadoria e do serviço público de saúde. No caso da Argentina, inclusive a privatização foi revertida, sendo a aposentadoria (re)estatizada. Em vários países latino americanos, os movimentos por sistemas públicos de saúde universalistas tem se inspirado na resistência brasileira ao desmonte do SUS, assim como na rejeição aos “pacotes” de serviços limitados para os pobres, propagados por organismos internacionais financeiros e de saúde, com apoio de empresas de saúde e governos neoliberais.
Na Europa ocidental, governos de diferentes orientações partidárias respondem à crise econômica que assola a região com cortes nas pensões, aposentadorias, seguros-desemprego e benefícios familiares; com reduções de salários e demissões de funcionários públicos; com aumento de impostos e elevação da idade para a concessão da aposentadoria; entre outras medidas de austeridade. No campo específico da saúde pública, ao lado da contenção do gasto, assiste-se, sob todas as formas, o aumento da participação do usuário no custeio. Apesar dessas investidas, cujo único objetivo é garantir que os Estados honrem o serviço da dívida junto aos bancos credores, a resistência tem sido intensa, de modo que a proteção social conhecida como Estado do Bem-Estar, embora abalada no que se refere à cobertura que concede, não sofreu uma desestruturação, mantendo sua forma organizativa e seus princípios universalistas.
Voltando ao Brasil, no que se refere à saúde especificamente, uma efetiva resposta do governo aos anseios da população passa por dois compromissos:
A) Assumir, concretamente, a implantação do SUS fundado na universalidade, igualdade e integralidade, a partir da elevação do investimento nos serviços próprios e da implantação de carreiras públicas, como já ocorre nos setores militar, da Justiça, do Ministério Público, do Banco Central, do Banco do Brasil e da Petrobrás, etc.
B) Promover a democratização e a “republicanização” do Estado, com reformas política, tributária e administrativa que levem à superação das estruturas estatais anacrônicas (patrimonialistas, clientelistas e burocráticas) e ao abandono todas as formas de privatização do Estado. Na área social, a garantia do caráter republicano e democrático do Estado está a exigir uma nova institucionalidade, que supere a fragmentação e a descoordenação das políticas de saúde. Essas reformas são necessárias para que os governos cumpram sua finalidade pública, sem que a governabilidade e a estabilidade política exijam concessões ao patrimonialismo, ao clientelismo, ao burocratismo e à privatização.
Diretrizes para uma Agenda Política e Estratégica da Saúde
1. Desenvolvimento de um projeto nacional inclusivo, autônomo e sustentável, que permita a todos os brasileiros, das gerações atuais e futuras, usufruírem do progresso econômico e social. Tal projeto, muito mais do que o crescimento do PIB, exige a superação das desigualdades sociais por meio da redistribuição da riqueza, da implementação de políticas sociais universalistas e da democratização do Estado.
2. Redução das desigualdades regionais a ser alcançada tanto por conta da melhor distribuição da riqueza nacional, como também por meio da regulação estatal da formação e da distribuição de profissionais de saúde, bem como da produção e da oferta de equipamentos, unidades assistenciais e serviços de saúde.
3. Resgate do Orçamento da Seguridade Social, sem a desvinculação das receitas da União (DRU), e garantia da parcela federal no financiamento do SUS, correspondente a 10% da sua Receita Corrente Bruta. Revisão da limitação do pessoal na Lei de Responsabilidade Fiscal. Investimento exclusivo nos estabelecimentos públicos, visando a expandir e qualificar, em todo o território nacional, as Unidades Básicas de Saúde (em número suficiente para assegurar a cobertura mínima de 80% da população), as Unidades de Pronto-Atendimento (cerca de 600 UPA), os ambulatórios de especialidades com serviços de apoio diagnóstico e terapêutico (cerca de 500 ambulatórios) e os hospitais regionais (cerca de 200).
4. Criação de novas fontes federais a serem efetivadas além dos 10% das Receitas Correntes Brutas da União:
– Taxação das grandes fortunas e aumento de impostos sobre bebidas alcoólicas e tabaco,
– Empréstimos do BNDES, nos moldes dos realizados para a Petrobrás, aos hospitais sem fins lucrativos que ofereçam serviços exclusivamente ao SUS,
– Parcela dos royalties do Pré-Sal e das Emendas Parlamentares Impositivas para a Saúde.
5. Fim dos subsídios públicos à assistência médica privada, seja sob a forma de descontos no imposto de renda, seja sob a forma do não-ressarcimento ao SUS pelos serviços utilizados por pessoas que possuem planos privados, seja sob a forma de co-financiamento pelo Estado de planos e seguros privados de saúde para os servidores e empregados públicos do Executivo, Legislativo e Judiciário.
6. Os novos recursos para o SUS devem ser destinados à organização das redes regionalizadas de atenção integral à saúde sob coordenação da Atenção Básica, universal e de qualidade, com investimentos nas carreiras públicas, reguladas com base em legislação nacional e sensíveis às especificidades regionais, com exclusividade para servidores públicos concursados, contemplando a fixação dos profissionais em todas as Regiões de Saúde do país.
7. As redes regionalizadas devem representar um modelo de atenção à saúde baseado nas necessidades e nos direitos de toda a população, com oferta integrada das ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, que permita a implementação da Universalidade, Igualdade e Integralidade.
7. Além da organização das redes, a implantação do modelo de atenção integral à saúde exige a regulação estatal do complexo industrial produtor e fornecedor de bens de saúde, no sentido de orientá-lo para a produção dos bens necessários à integralidade da atenção. Dentre as medidas a serem adotadas, destacam-se o uso do poder de compra do SUS para o fomento industrial do setor saúde, a expansão e o fortalecimento dos laboratórios públicos, e a ampliação do investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias que promovam o bem-estar e a autonomia dos usuários e minimizem os riscos de iatrogenia.
8. A compra de serviços complementares no setor privado deve substituir o pagamento por produção (tabela de procedimentos e valores), pelo cumprimento de metas quali-quantitativas previamente pactuadas de acordo com as necessidades da população e a implementação do novo modelo de atenção, com valores não inferiores ao custo. O conceito e a prática da complementaridade devem ser revistos no sentido de se tornarem efetivamente complementares e não o centro financeiro e programático do sistema. A extensa rede de hospitais sem fins lucrativos dedicados exclusivamente ao SUS deve ser priorizada no processo de contratação.
9. Melhoria da eficácia e da eficiência da gestão pública com a criação de um ente público com poder de autoridade sanitária da Região de Saúde. Este ente deve ser cogerido e cofinanciado pela União, pelos estados e pelos municípios. Cada região corresponderá à menor célula do sistema de saúde, onde serão pactuadas as responsabilidades das três esferas de governo. Na Região, atuarão os conselhos de saúde e outros mecanismos de participação e de controle social.
10. Os níveis locais e regionais da gerência pública de saúde deverão ter a necessária autonomia administrativa e orçamentária, descentralizada aos estabelecimentos públicos de saúde de médio e grande porte, com incentivos ao cumprimento das metas quali-quantitativas de acordo com as necessidades e as prioridades por meio de figuras jurídicas públicas previstas na Constituição, subordinadas ao controle público interno e externo e ao controle social, pelos conselhos de saúde.
11. Efetivação do planejamento ascendente participativo com base nas necessidades e nos direitos de toda a população, para o estabelecimento de prioridades e metas. As tarefas de avaliação e controle (institucional e social) deverão ser estendidas às entidades e aos movimentos sociais, além dos gestores, trabalhadores e conselheiros de saúde, garantindo a transparência da gestão.
12. Os conselhos de saúde devem participar ativamente no resgate da participação direta das entidades e dos movimentos da sociedade civil, na recuperação da consciência dos direitos sociais de cidadania. Devem resgatar também a mobilização de forças nas bases dos movimentos e das entidades neles representados, incluindo as manifestações de rua da população, para a efetiva democratização do Estado e construção de políticas universalistas de qualidade. Os conselhos de saúde deverão realizar junto às entidades a sua atribuição legal de participar na formulação de estratégias, e não simplesmente reagir ou não às estratégias formuladas em instâncias governamentais.
Assinam este documento:
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco
Associação Brasileira de Economia da Saúde – Abres
Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde – Ampasa
Associação Paulista de Saúde Pública – APSP
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes
Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa
Assista ao vídeo do presidente da Abrasco, Luis Eugenio Portela, sobre os temas do II Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúde.