Usurpar o Público e Alimentar o Privado

por Heleno Rodrigues Corrêa Filho, cebiano, médico graduado pela UnB, Doutor em Saúde Pública pela USP/FSP, PD-Fellow junto à Johns Hopkins-JHBSPH.


O roubo de dados dos cidadãos será, ou já foi, praticado pelo governo ao arrepio da lei de proteção de dados individuais (Brasil – Pr, 2018). O próprio ministro da saúde anuncia que os dados públicos armazenados em bancos governamentais sobre vida, saúde, doença e sigilo pessoal poderão ser acessados por entes privados para praticar suas ações de seguro e serviços de saúde.

Causa nojo e espanta a afirmativa de um ministro de estado dizendo que qualquer grupo privado, com seus “médicos” executivos do patronato que vende planos, terá acesso direto aos dados dos cidadãos.


A expectativa do ministro é que metade dos estados brasileiros esteja ligada ao Conecte SUS até o final de 2021.” – Citação da FolhadeSP: [https://www.folhavitoria.com.br/saude/noticia/11/2019/sus-pretende-usar-inteligencia-artificial-para-agilizar-atendimentos]

Leia também abaixo trecho da concedida à Agência Brasil:
Agência Brasil: Os dados dos perfis de usuários do SUS poderão ser usados pela rede privada? O usuário pode levar essa “ficha médica” para fora do SUS?
Luiz Henrique Mandetta: Sim. A ideia é propagar a informação entre os estabelecimentos públicos e privados. Desde que sejam atendidos todos os critérios técnicos de segurança”.

No link, o restante da entrevista.


Não se trata de uma ilegalidade acidental. Foi planejada desde os últimos três ministros da saúde que negaram quando foram acusados de permitir essa ilegalidade. Todos falam “pelo bem do cidadão” sem considerar que a via de informação do estado é obrigatória e nenhum cidadão pode evitar constar dos bancos de dados que vão compartilhar sobre ele e sua família.

Além de violação das normas éticas de estado, das normas bioéticas que protegem indivíduos do uso de seus dados contra si, das leis que protegem a privacidade do cidadão em sua vulnerabilidade individual, trata-se de um crime continuado contra o direito público à saúde estabelecido pela Constituição de 1988.

Os dados dos cidadãos brasileiros são processados no DATASUS [http://datasus.saude.gov.br/]. Há anos que os sistemas oficiais desse Departamento do Ministério da Saúde deixaram de ser atualizados. O investimento em pessoal, infraestrutura e manutenção tem sido reduzido além das reduções praticadas pela retirada de financiamento do SUS.

No último governo Temer foram desativadas seções inteiras do DATASUS em todo o Brasil. Foram também demitidos técnicos contratados diretamente por CLT e terceirizados que mantiveram o processamento dos dados durante as quatro últimas décadas.

Esse processo preparou a terceirização e venda dos dados para o mercado privado de seguradoras e vendedores de planos de saúde que financiaram diretamente as eleições dos deputados federais transformados em ministros da saúde a partir do final do governo Dilma.

Na verdade, o processo de abordagem pirata e desmonte começou alguns meses antes do golpe de estado que levou ao poder um grupo lobista diretamente interessado na invasão, apropriação e venda dos dados que permitem filtrar quem pode comprar seguro-saúde e planos “acessíveis”, quem deve pagar mais, como os idosos e doentes, e quem deve custar mais, como os que têm doenças relacionadas com tendências familiares como diabetes, hipertensão e até o câncer.

Todo ministro de estado que teve eleição financiada por planos de saúde deveria preocupar-se em demonstrar que é ético e não trabalha em conflito de interesse por ter sido financiado pelo privado para entregar o público.

A defesa do DATASUS, assim como a DATAPREV, é a última trincheira de defesa dos direitos dos cidadãos à seguridade social e a um projeto de estado em que o interesse privado neoliberal não domine a vida e a morte dos cidadãos indefesos.

No caso da oferta de repasse de dados individuais em bases nacionais para o mercado privado estamos diante de um crime contra a cidadania claramente tipificado em leis. Os senhores procuradores da República que vivem procurando barcos de lata e compras de caseiros deveriam envergonhar-se de suas ações políticas contra políticos que defendem os direitos de cidadania. Deveriam trabalhar para fazer valer os direitos que são pagos para defender.

Os dados dos cidadãos devem ser ALIMENTADOS pelos entes privados em virtude do interesse nos processos regulatórios, na informação epidemiológica, na programação de prioridades e na programação de ações de saúde pública. O que se está propagando é o contrário. É apropriação indébita e ilegal de dados individuais para disponibilização a quem vai onerar, excluir e lucrar com a informação em detrimento dos usuários.

As organizações sociais voltadas para a defesa da saúde como o CEBES, ABRASCO, SBB, Rede Unida, e outras, não têm como aceitar os ataques diários contra os direitos dos cidadãos à seguridade social e à saúde. Este é um ataque final contra o sistema público de acesso universal à saúde.

Referência:

BRASIL – PR. LEI Nº 13.709, DE 14 DE AGOSTO DE 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019). 13.709. CONGRESSO NACIONAL (APROVA) PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SANCIONA COM VETOS). Brasília DF: D.O.U. Diário Oficial da União, 2018.