“Vândalos” do transporte público, ditadura e democracia

Por Eduardo Fagnani* / publicado em Carta Capital

Há 40 anos os governantes de São Paulo tratavam a revolta popular como “caso de polícia”. Pouco mudou desde então.

Há quarenta anos, em plena ditadura, irromperam violentas manifestações populares de protesto contra o péssimo serviço de transporte público. Os “quebra-quebras” foram intensos no Rio de Janeiro e São Paulo. “Nem mesmo fontes bem informadas do monolítico sistema autoritário do pós-64 estavam preparadas para prever as surpresas que lhes reservava, a partir de julho de 1974, uma parcela significativa das massas suburbanas de nossas grandes metrópoles”. Os usuários dos velhos trens da RFFSA e da FEPASA “surpreenderiam as autoridades públicas com repetidas explosões de furor que incluiriam depredações, quebra-quebras e a queima de unidades de transporte contra os quais se dirigia a insatisfação imediata das massas urbanas”, afirmam MOISES E MARTINEZ-ALIER (1977:15).

A revolta popular estendeu-se por mais de uma década (FAGNANI, 1985). Em 1984, um desses eventos ocorreu em São Paulo: “a composição do tipo automático só deixa a plataforma quando todas as portas estão fechadas. Com a demora, os passageiros que lotavam todos os vagões, deixaram o trem, passando a apedrejá-lo depois. Quase todos os vidros foram quebrados e muitos bancos acabaram arrancados pelos passageiros” (Apedrejado trem da Rede na Zona Leste. O Estado de S. Paulo, 28/02/1984).

Quarenta anos depois a pane de um trem do Metrô provocou tumulto de grandes proporções. Segundo a imprensa, “após 25 minutos de espera e incomodados com o calor, a superlotação e a falta de informações, usuários de diversos trens daquela linha (…) apertaram botões de emergência, saíram de seus vagões e caminharam pelos trilhos. Por razões de segurança, a energia foi desligada, e a circulação no sistema, interrompida. A paralisação durou cinco horas. Dos 40 trens que circularam naquele trajeto, 19 sofreram algum tipo de dano, como vidros quebrados” (Metrô a portas fechadas. Folha de São Paulo, 7/2/2014).

Nos dias seguintes a mesma composição voltou a ter problemas, reprisando um cenário corrente nos últimos anos. Segundo relatório obtido pelo jornal O Estado de São Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação, “as várias falhas operacionais ocorridas” no Metrô em 2012 “fizeram a empresa registrar aumento de 170% no cancelamento de viagens programadas” (Falhas fazem Metrô aumentar 170% dos cancelamentos de viagens. O Estado de São Paulo, 22/07/2012).

Há quarenta anos os porta-vozes da ditadura culpavam os “radicais”. Os incidentes estariam sendo insuflados por “elementos estranhos” aos usuários. “Trabalhador não viaja de trem, viaja de ônibus, porque tem horário”, disse o general Milton Gonçalves, presidente da RFFSA, após tumulto ocorrido no subúrbio (Veja, 23/7/1975).

Na mesma linha, o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Coronel Erasmo Dias, sentenciava: “Quem faz a boiada estourar, normalmente está completamente longe da boiada. É o que acontece com determinados indivíduos mal formados e, quem sabe, talvez com tendências até, digamos assim, subversivas” (MOISES E MARTINEZ-ALIER, 1977:35).

Para um coronel que dirigia a RFFSA, “os maus elementos que lideram os passageiros revoltosos” teriam provocado outros incidentes nos subúrbios cariocas em 1975. A nota oficial divulgada pela RFFSA também apontava nessa direção: “Decorridos 15 minutos de paralisação dos trens, os passageiros exaltados insuflados por maus elementos passaram a depredar os carros, arrancando bancos e jogando pedaços de madeira na linha dois (de subida), além de impedir que a máquina-socorro encostasse para rebocar a composição avariada. (…) Assim, (a RFFSA) apela a seus usuários para não se deixarem influenciar por depredadores, aproveitadores de horas críticas e interessados em prejudicar o movimento da grande massa de pessoas que se utilizam do transporte ferroviário para ganhar seus locais de trabalho” (Trem atrasa, duas estações são destruídas. O Estado de S. Paulo, 25/06/1975).

Quarenta anos depois os governantes de São Paulo também culpam os “radicais”. “Não vamos permitir vandalismo”, disse o secretário dos transportes. “Algumas pessoas incitaram, com palavras de ordem, que as pessoas pulassem nas linhas. Inclusive tocaram fogo entre a estação Sé e Parque Dom Pedro. (…) O mesmo vandalismo que tirou a liberdade de expressão das ruas, daqueles que foram pras ruas para tentar mudanças, esse mesmo tipo de vandalismo quer entrar no metrô. E não vai entrar. Nós seremos rígidos”, afirmou em entrevista ao programa “Bom dia São Paulo”, da Rede Globo.

O governador do estado atribuiu a paralisação à ação de um grupo de “vândalos” e não descartou a possibilidade de “sabotagem”. Para ele, o evento não foi fruto de “geração espontânea”. Ao contrário, teria sido provocado pela “ação inicial de um grupo de pessoas e depois de vândalos, que acabaram atacando estação, trem e destruindo patrimônio. (…) É preciso evitar que o sistema de segurança possa ser utilizado por pessoas para fazer sabotagem ou para causar prejuízos”, afirmou (Alckmin não descarta ‘sabotagem’ em paralisação do Metrô, O Estado de São Paulo, 5/2/2014).[2]

Há quarenta anos os governantes de São Paulo tratavam a questão como “caso de polícia”. O então Prefeito de São Paulo, Reynaldo de Barros, por exemplo, diante dos incidentes ocorridos nos subúrbios da RFFSA afirmou o seguinte: “Somente uma organização infiltrada entre os passageiros naquela hora poderia ter ocasionado o tumulto. (…) Alguém estava interessado no tumulto e isso a polícia vai apurar”. Curioso que o então diretor do DOPS, Delegado Romeu Tuma, afirmou ao mesmo jornal que acreditava ser remota a hipótese do Prefeito (Reynaldo de Barros culpa radicais. O Estado de S. Paulo, 10/02/1981).

Quarenta depois os governantes de São Paulo continuam a tratar a questão como “caso de polícia”. Por determinação do governador, o Secretário da Segurança Pública passou a investigar o tumulto no metrô. “As imagens já foram direcionadas a uma delegacia especializada do DEIC que cuida destes crimes. Nós vamos dar prioridade porque é um fato grave que afeta milhões de pessoas e nós precisamos elucidar para identificar aqueles elementos que, eventualmente, estejam praticando atos de vandalismo e causando enorme prejuízo para a população de São Paulo”, afirmou o dirigente (Secretaria de Segurança Pública recebe imagens da confusão do metrô. Jovem Pan, 6/2/2014).

Há quarenta anos eram raríssimas as autoridades que associavam esses incidentes às precárias condições dos serviços prestados. Naquela época, ao menos um general admitiu o fracasso do governo que representava. Em 1975, o então Presidente da RFFSA afirmou o seguinte: “Sei que os quebra-quebras são consequências do descaso, do abandono a que os trens suburbanos foram relegados. Nos últimos 10 anos a RFFSA não adquiriu um único vagão. Não acompanhou o desenvolvimento populacional. As administrações passadas devem ter tido motivos para não terem dado atenção à aquisição de novos materiais e ao melhoramento das linhas. Falta de verbas, talvez, mas a verdade é que eu sofro as consequências de tudo isso” (De início serão tomadas medidas. Folha de S. Paulo, 19/7/1975).

Foi um gesto isolado naqueles tempos sombrios. Hoje, as lideranças democráticas são incapazes de admitir a realidade escancarada diante dos olhos de quem quer ver. Aqueles que lutaram contra a ditadura tinham esperanças que os governos democráticos enfrentariam os problemas sociais crônicos herdados do passado, como o transporte público, por exemplo. Entretanto, isso não ocorreu. Omissões e descaminhos têm sido marcas da gestão democrática.

Observe-se que em muitas metrópoles globais como São Paulo, prepondera a oferta de transporte coletivo (metrô, trens e ônibus) ante o individual (automóvel, taxi, moto). E, dentre o transporte coletivo, prevalecem os sistemas de alta capacidade (metrô e trem) ante o ônibus. Não obstante, temos caminhado na contramão desses parâmetros. Dados da última Pesquisa Origem Destino revelam que 1967/2007 a participação do transporte coletivo no total de viagens motorizadas caiu de 68% para 55%; e, dentre as viagens coletivas, o ônibus é preponderante (78% das viagens) em relação ao metrô (16%) e ao trem (6%).

Entre 1968/2011 construímos em média 1,7 km de metrô por ano (1,4 km/ano nos últimos 19 anos). Metrópoles da América Latina apresentam melhor desempenho: Cidade do México (4,4) e Santiago (2,6), por exemplo.

A reduzida oferta de metrô é evidenciada pelo indicador “habitante por km/linha”. Numa amostra com mais de uma centena de aglomerações globais, São Paulo figura entre as dez piores posições. Diversas cidades latino-americanas estavam em melhores condições: Guadalajara, Santo Domingo, Monterrey, Medellín, Cidade do México e Santiago. Esta última metrópole tem a metade da população de São Paulo e o dobro de km de linha de metrô.

Com mais de 270 km de linhas, a CPTM – criada em 1992 pela incorporação dos velhos sistemas da RFFSA e FEPASA – ainda opera com equipamentos (elétricos, sinalização, segurança, etc.) e trens obsoletos que geram paralisações constantes. Levantamento realizado pela empresa revela que o sistema “sofre, em média, uma pane por dia que provoca a paralisação total ou parcial da linha por alguns minutos ou horas”. O Ministério Público abriu em 2013 um inquérito civil para apurar a origem dessas panes. Segundo o promotor, a CPTM opera com as linhas “no limite” e “sobrecarregadas” (CPTM falha todo santo dia. Diário de São Paulo 27/10/2013).

A situação não é diferente no Rio de Janeiro que privatizou a malha ferroviária de 270 quilômetros da antiga RFFSA nos anos de 1990. O usuário dos trens cariocas também tem sido submetido à longa procissão de panes, paralisações e tumultos. Duas décadas após a concessão, “metade da frota tem idade média de 30 anos ou mais”. Ainda estão em circulação trens das décadas de 1950 e 1960. Hoje o sistema transporta 600 mil usuários por dia, menos da metade dos 1,3 milhão de passageiros transportados pelos velhos trens da RFFSA na década de 1980. A concessionária privada tem sido autuada por situações consideradas graves. Entre as infrações “está o uso indevido de cães de agentes de segurança em 2009. No mesmo ano, seguranças deram chicotadas nos passageiros para que as portas dos trens pudessem ser fechadas. Em 2010, um trem partiu sem maquinista, em outra infração”. Somente nas três primeiras semanas de 2014 “oito boletins de ocorrência gerados por incidentes envolvendo a concessionária já foram registrados pela Agetransp” (SUPERVIA tem R$ 5 milhões em multas em 5 anos; só R$ 1,9 milhão foi pago. G1 Rio. 22/01/2014).

Após longo período de letargia, a sociedade está em movimento. Reivindica direitos, cidadania e participação nos destinos do país. Não por acaso, o transporte público foi o estopim das manifestações de junho de 2013; e, São Paulo e Rio, os epicentros. Entretanto, os dirigentes públicos continuam surdos para essas vozes e, após longa etapa de erros e omissões na condução das políticas de mobilidade, seguem reproduzindo práticas de um período obscuro da nossa história. Culpam as vítimas e tratam a questão social como caso de polícia.

Referências

FAGNANI, E. (1985). Pobres viajantes. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/UNICAMP.

MOISES, J.A. e MARTINEZ-ALIER, V. (1977). A revolta dos subúrbios ou “Patrão, o trem atrasou” in Contradições urbanas e movimentos sociais, Rio de Janeiro, CEDEC/PAZ e Terra.

 

 

* Doutor em economia, professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento.

**Em 2010, caso parecido também foi taxado de ‘sabotagem’ pelo então governador Alberto Goldman. A deputada Soninha Francine, que chefiava a campanha presidencial de José Serra na internet, escreveu: “Metrô tem problemas na proporção direta da proximidade com a eleição. Coincidência? #SABOTAGEM #vale-tudo #medo” (Em 2010, caso parecido foi taxado de ‘sabotagem’. Folha de São Paulo, 6/2/2014).