Viabilidade do feto a partir de 22 semanas: o que especialistas têm a dizer
Defensores de propostas como o PL 1904 sustentam que, a partir desse período, o feto teria plenas condições de sobreviver fora do útero. Mas será que isso é verdade?
Quase 100 propostas legislativas que ameaçam o direito ao aborto estão tramitando no Congresso, segundo um levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). Para defender o endurecimento das leis contra a interrupção de gravidez no país, políticos conservadores e de extrema direita têm disseminado informações enganosas sobre o tema.
Vale destacar que, no Brasil, o aborto é permitido apenas em três situações, independentemente do tempo de gestação: quando há risco à vida da mulher, em casos de estupro ou quando o feto é diagnosticado com anencefalia.
Entre as investidas antiaborto, está o Projeto de Lei 1904/2024 que prevê a equiparação do aborto após 22 semanas de gravidez, quando houver viabilidade fetal, ao crime de homicídio simples, incluindo casos de estupro. De autoria de Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 53 deputados, o PL estabelece que quem realizar o procedimento após esse período poderá ser condenado a até 20 anos de prisão. Médicos e outros profissionais de saúde que tiverem conhecimento sobre o aborto e não comunicarem à polícia também estarão sujeitos à penalidade.
Um dos argumentos citados pelos defensores da proposta refere-se à viabilidade da vida fora do útero a partir de 22 semanas. Deputados e deputadas como Eli Borges (PL-TO) e Chris Tonietto (PL-RJ) sustentam que, nesse período, o feto teria plenas condições de sobreviver fora do útero.
“A partir de cinco meses, há a viabilidade fetal presumida, portanto, o bebê tem totais condições de sobreviver mesmo fora do útero da mãe”, afirmou Tonietto em seu perfil na rede social instagram.
Ligada ao ultraconservadorismo católico, a parlamentar é vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados e coordena a Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida. Ela é, inclusive, relatora da Proposta de Emenda Constitucional 164/2012, ainda mais severa do que o PL, pois busca garantir a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção — o que tornaria inviáveis as possibilidades de aborto previstas em lei.
Eli Borges, autor do requerimento de urgência do PL na Câmara e coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, utilizou uma informação falsa ao argumentar que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a partir de 22 semanas de gestação, o aborto seria considerado assassinato, pois o feto poderia sobreviver fora do útero.
Na realidade, a OMS não classifica o aborto como assassinato em nenhuma circunstância. Em suas diretrizes mais recentes, publicadas em 2022, a organização desaconselha a adoção de limites gestacionais para a interrupção da gravidez, afirmando que não há evidências científicas que respaldem tal limitação.
A discussão levantada gera a seguinte dúvida: é correto afirmar que, a partir de 22 semanas de gestação, o feto tem grandes chances de sobreviver? Para esclarecer a questão, o Portal Catarinas consultou especialistas.
Chance de sobrevivência
Embora exista a possibilidade de sobrevivência fora do útero, as chances são baixas e o risco de sequelas é elevado, conforme destacam os médicos entrevistados pela reportagem. “Sabemos, com base em evidências, que a sobrevivência em fetos com extrema prematuridade é baixa, infelizmente”, diz a médica Geovana Ribas Virtuoso, diretora residente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a prematuridade da seguinte forma: prematuros extremos, que nascem antes das 28 semanas; muito prematuros, que nascem entre 28 e 31 semanas; moderadamente prematuros, que nascem entre 32 e 36 semanas; e limítrofes, que nascem entre 36 e 37 semanas.
Virtuoso explica que, em relação à viabilidade fetal, o termo mais utilizado atualmente na medicina é “investimento”. Segundo ela, fetos com mais de 24 semanas têm maior compatibilidade com a vida, sendo essa idade gestacional adotada como um “ponto de corte” pela categoria.
“De modo geral, é consenso que fetos acima de 24 semanas são mais compatíveis com a vida […] No entanto, há serviços onde a idade gestacional considerada é até mesmo antes (por volta de 23 semanas), e há literatura internacional, como no Japão, por exemplo, em que se consideram investíveis fetos a partir de 22 semanas”, pontua Ribas.
O Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG) alerta que a viabilidade fetal não se resume somente a idade gestacional, mas depende de vários fatores, incluindo o sexo do feto, a genética, o peso, as condições do parto e a disponibilidade de um profissional especializado em cuidados neonatais intensivos.
“Mesmo com todos os fatores disponíveis considerados, ainda não é possível prever definitivamente a sobrevivência. Embora alguns fetos nascidos durante o período periviável [estágio inicial de maturidade fetal, que ocorre entre 22 e 24 semanas de gestação] possam sobreviver, eles também podem apresentar morbidade e comprometimento significativos”, ressalta a associação em nota na qual se posiciona contra políticas que restrinjam o aborto com base no número de semanas de gestação.
O médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), afirma que, em casos de bebês com menos de 25 semanas que apresentem parada respiratória ou complicações graves, os profissionais geralmente não realizam intervenções. “Com 23 ou 24 semanas e 16 dias, a mortalidade é extremamente alta”, observa.
De acordo com Moraes, quando os bebês sobrevivem, as sequelas da prematuridade são significativas. “Quando a gestação é inferior a 26 ou 27 semanas, as complicações são muito graves. Além de longos períodos de internação, os bebês que sobrevivem nascem com diversos problemas, como dificuldades cognitivas e respiratórias devido ao desenvolvimento incompleto dos pulmões, além de problemas que podem surgir mais tarde, como hipertensão e diabetes”, explica.
Um artigo assinado por Moraes e outros profissionais, como a médica Helena Paro, aponta que sequelas como desconforto respiratório, ducto arterioso patente, hemorragia intraventricular grave, enterocolite necrosante, sepse tardia, displasia broncopulmonar com necessidade de oxigênio suplementar e retinopatia ocorrem em 100% dos nascimentos a partir de 22 semanas e em até 43% dos nascimentos com 28 semanas de gestação.
A presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, deputada Ana Pimentel (PT-MG), que também é médica, destaca que, para que fetos com 22 semanas tenham a chance de sobreviver, é necessário que sejam atendidos em centros altamente especializados, que são extremamente raros no Brasil. “Você não pode afirmar tecnicamente, cientificamente, que esse feto retirado do útero, nesse marco, vai sobreviver”, aponta.
Conforme Melania Amorim, ginecologista e obstetra, a oferta de tratamento intensivo demanda grande investimento no sistema de saúde. Atualmente, o Brasil conta com 10.288 leitos de UTI Neonatal nos sistemas público e privado.
Um levantamento da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), divulgado em novembro de 2024, mostrou que, em 17 Estados, a quantidade de leitos de UTI neonatal é inferior ao recomendado pela literatura científica (4 leitos por 1.000 nascidos vivos), mesmo somando os leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) e da rede suplementar.
Conforme a pesquisa, nestas unidades da federação, seria necessário um aumento de cerca de 1.500 leitos adicionais para atingir a meta de cobertura mínima recomendada.
As desigualdades são mais acentuadas e graves nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, destaca a médica sanitarista e professora universitária Ana Maria Costa. “Há uma elevada concentração de centros especializados nas regiões Sudeste e Sul do país, geralmente localizados em hospitais de referência com UTIs neonatais de nível III ou IV. Essas UTIs estão melhor equipadas para oferecer ventilação mecânica, suporte nutricional e monitoramento intensivo, que são imprescindíveis para garantir a sobrevivência desses bebês”, comenta.
Outra questão relevante sobre o tema é levantada pela obstetra Helena Paro, que criou o primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do país. Ela menciona a posição da Federação Internacional de Obstetrícia e Ginecologia (Figo), que esclarece que a viabilidade é um conceito médico aplicado ao contexto de partos prematuros espontâneos, não a abortos induzidos, e serve para orientar a adequação dos cuidados intensivos neonatais.
“O parto prematuro é uma medida de último recurso em obstetrícia, uma vez que qualquer dano, por menor que seja, deve ser evitado ao recém-nascido. Essa confusão proposital leva à perigosa ladeira escorregadia que banaliza os danos da prematuridade”, adverte a entidade.
Interrupção tardia
A também pesquisadora, professora e ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos, Melania Amorim, destaca que as chances de sobrevivência aumentam à medida que a idade gestacional avança. A profissional enfatiza a importância de rejeitar propostas como o PL, argumentando que os abortos realizados com 22 semanas ou mais representam uma minoria. “Cerca de 90% dos abortos vão ser realizados até 12 ou 13 semanas”, destaca.
Amorim acrescenta que, em geral, mulheres adultas conseguem identificar a gravidez mais cedo, enquanto meninas e adolescentes negras, em situação de vulnerabilidade social e vítimas de estupro, tendem a descobrir a gestação mais tarde, sendo as mais afetadas por abortos em estágios mais avançados.
“Elas podem engravidar, às vezes, sem sequer ter menstruado a primeira vez. Ou então menstruaram, mas tem aqueles ciclos irregulares do começo da adolescência e são meninas. Elas demoram a perceber, a reconhecer que estão grávidas […] Então, a gente tem que entender que quando alguém, uma menina negra, pobre, está nessa posição de precisar de uma interrupção além de 22 semanas, é porque nós, a sociedade, os serviços de saúde, falhamos miseravelmente com essas meninas”, conclui.
Reportagem: Catarinas/Emily Leão