A carreira médica e o Sistema Único de Saúde, por Lia Giraldo

Por Lia Giraldo da Silva Augusto*

 

Os ousados princípios do Sistema Único de Saúde-SUS continuam bandeiras atuais. Podemos dizer que a expansão da Atenção Primária à Saúde – APS, mediante a Estratégia de Saúde da Família-ESF e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde-PACS, construiu uma rede territorial de serviços de saúde, mas que está longe de qualificada para atender com resolutividade às demandas das comunidades para esse nível de atenção.

Minha carreira de pediatra e sanitarista, por exemplo, foi marcada por dois períodos: antes e depois do SUS. No período anterior, os serviços de saúde pública estavam dirigidos fundamentalmente para as endemias transmissíveis clássicas; ao pré-natal e à puericultura, além da vigilância sanitária. Mas em meados da década de 70, já se manifestavam experiências de atenção inovadora em diversas regiões do País. Com a redemocratização, após o regime militar imposto de 1964 a 1985, veio a vivência do segundo período. Essas novas demandas afloraram na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) e o debate instituído no país promoveu na Constituinte de 1988, os princípios e diretrizes, para o novo sistema de saúde.

Com a Lei 8080 de 1990 muitas dessas experimentações foram institucionalizadas. Por exemplo, a Saúde do Trabalhador e a Saúde da Mulher, progressivamente ganharam concretude nos serviços de saúde. Programas com base em um novo paradigma gestado pelo movimento sanitário e pela corrente da epidemiologia crítica latino-americana (LACAZ, 1997; BREILH, 2006).

Mas apesar do discurso vanguardista e sua expressão no arcabouço jurídico-institucional ter avançado na direção do entendimento da saúde como um direito de todos e um dever do Estado, a exercício profissional da medicina permaneceu inspirado no relatório Flexner, que foi responsável pela reforma das escolas médicas nos Estados Unidos da América (EUA), repercutindo na medicina mundial (ALMEIDA, 2010). O princípio da integralidade, por exemplo, é totalmente incompatível com a visão fragmentada pela formação médica.

A criação do SUS não foi acompanhada de pronto por uma mudança no currículo dos profissionais de saúde e, tão pouco, foram criadas carreiras que induziriam ou orientariam o interesse profissional para outro modelo de atendimento.

A formação médica seguiu a mesma por mais de uma década, e só nos últimos quinze anos a reforma curricular se inicia nas universidades públicas (ARAUJO; AGUIAR; AUGUSTO, 2011).

Agora, com o novo currículo médico mais amadurecido nas Faculdades de Medicina das Universidades Federais e Estaduais, e com critérios orientadores para a abertura de novas faculdades de medicina, o tema passa a ser internalizado, mas ainda com muitos paradoxos no próprio sistema de saúde e na mercantilização dos cursos privados (ALMEIDA, 2010).

Na verdade, a base “territorial” de organização da atenção primária (ou atenção básica) seguiu uma lógica não do território da determinação social da saúde. Mas, apenas uma divisão de cobertura numérica de famílias domiciliadas (MARTINS, 2011). Também, o esvaziamento técnico das Secretarias Estaduais de Saúde, pelo processo de municipalização, que atrelou diretamente a rede local ao nível ministerial, casou uma onda normalizadora do trabalho na rede local incompatível com uma práxis necessária a realidade local.

A verticalização da maioria dos programas automatizou os procedimentos nos serviços de saúde, retirando a capacidade criativa das equipes para atuar na complexidade dos problemas do território real, onde vivem e trabalham as pessoas. Indicadores de produtividade foram estabelecidos para o controle e avaliação para todo o país, mesmo com gritantes diferenças regionais, culturais e de perfis epidemiológicos.

Outros agravantes se observam. As clínicas fundamentais perdem espaço na atenção primária, com grave repercussão para o mercado de trabalho e desestimulando o interesse dos médicos. É o caso da Pediatria e da Obstetrícia. Vivemos atualmente uma desassistência pediátrica, com altas taxas de parto por cesarianas e alta mortalidade neonatal.

A prática clientelista se instalou na estruturação dos PACS e ESF nos níveis locais, com desvios insustentáveis na alocação de recursos humanos, pouco qualificados, ou com descontinuidade de equipes. Apesar do muito que se tem gasto para treinar profissionais para a rede de saúde.

Há dez anos, foi iniciada uma nova experiência docente em uma Faculdade de Medicina pública, no estado de Pernambuco, na coordenação de um módulo de Atenção Primária à Saúde para alunos do primeiro período. Foi encontrado, de início, uma enorme rejeição a esse ensino por parte dos alunos, que recebiam dos veteranos uma carga de maledicência sobre a Saúde Coletiva (AUGUSTO e BELTRÃO, 2011).

Convencidos de que se tratava de uma herança relacionada com aspectos ideológicos e metodológicos, tratou-se não só de alinhar o Módulo aos princípios da Reforma do Currículo Médico, mas experimentar outra pedagogia.

Primeiramente, um objetivo foi mostrar o território como um espaço de produção social onde o binômio inseparável saúde-doença se processa. Os estudantes munidos de um roteiro e máquina fotográfica registram situações desfavoráveis e favoráveis no contexto sócio-ambiental. Seguido de seminários que conceituam o tema do território inspirado pela Geografia Crítica de Milton Santos (ALBUQUERQUE e AUGUSTO e, 2011).

Em seguida, observam o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Saúde Ambiental (Programa de Saúde Ambiental da Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Recife) e fazem com eles uma análise coletiva de trabalho para que exponham “o que fazem” (FERREIRA, 1998). Esta atividade é seguida de um seminário sobre o tema trabalho e saúde envolvendo estudantes e profissionais das unidades básicas de saúde (são sete por semestre).

Os dados epidemiológicos constantes da Unidade de Saúde são levantados para uma análise demográfica e da situação de saúde existente. Posteriormente, famílias são selecionadas para visitas domiciliares a serem realizadas por duplas de estudantes, acompanhadas de um profissional da Unidade Básica de Saúde. Com antecedência os prontuários (Ficha A) são lidos pelos estudantes com orientação de um tutor e são debatidos os registros constantes. As visitas domiciliares são guiadas por um roteiro. Um seminário temático sobre a família como rede de cuidado é realizado após essa prática.

Antes de cada uma dessas atividades há orientação, por grupo de estudantes, realizadas por tutores da faculdade e acompanhadas por preceptores das unidades básicas de saúde.

Por fim, eles sistematizam todas as informações guiadas por uma matriz da reprodução social onde se interconectam as reproduções: biocomunal, da autoconsciência e da conduta; técnico-econômica, ecológico-política, conforme proposto por Samaja (2000). Essa sistematização, segundo esse modelo lógico, é apresentada na forma de seminário por todos os grupos de estudantes na faculdade, um banner contendo o resumo do trabalho é debatido na Unidade Básica de Saúde e deixado como devolutiva dessa vivência acadêmica.

Gradualmente nota-se uma diferença na aceitação dos conteúdos do Módulo de Atenção Primária à saúde, mas ainda se observa enorme fragmentação no currículo, quer horizontalmente nos eixos organizadores, que verticalmente, na progressão do conhecimento. Enormes lacunas de conhecimento existem para dar ao estudante uma formação compatível com o entendimento de que a especialidade não se opõe a integralidade da atenção à saúde.

 

*Lia Giraldo da Silva Augusto é professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco. Professora do Corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/ Fiocruz –PE.

 

Referências Bibliográficas

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ALMEIDA, N. Cem anos após publicação, relatório Flexner continua atual. Notícias UNICAMP. 18/05/2010. Disponível em http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/cem-anos-ap%C3%B3s-publica%C3%A7%C3%A3o-relat%C3%B3rio-flexner-continua-atual. Acesso em 30/04/2014.

ARAUJO, M.H.; AGUIAR, M.C.C.; AUGUSTO, L.G.S. Currículo das Escolas de medicina frente às demandas sociais. . In: Augusto, L.G.S.; Beltrão, A.B. Atenção Primária á Saúde. Ambiente, território e Integralidade. Recife. Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2011. Pg. 56-63.

AUGUSTO, L.G.S; BELTRÃO, A.B. Apresentação do Módulo de Atenção Primária à Saúde. . In: Augusto, L.G.S.; Beltrão, A.B. Atenção Primária á Saúde. Ambiente, território e Integralidade. Recife. Editora da Universidade federal de Pernambuco, 2011. Pg. 67-78.

BREILH, J. Epidemiologia Crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz. 2006, 306P.

FERREIRA, L.L. TRÊS REGISTROS DA LINGUAGEM NO TRABALHO. INTERCÂMBIO, vol.VII: 113-123, 1998. Disponível em: file:///C:/Users/Lia/Downloads/4008-9319-1-SM.pdf. Acesso em 30/04/2014.

LACAZ, F. A. Saúde dos trabalhadores: cenário e desafios. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, v.13(Supl. 2):7-19, 1997.

MARTINS, P.H.A nova compreensão da família no processo de descentralização da política de saúde. In: Augusto, L.G.S.; Beltrão, A.B. Atenção `Primária á Saúde. Ambiente, território e Integralidade. Recife. Editora da Universidade federal de Pernambuco, 2011. Pg. 213-227.

SAMAJA, J.A. A reprodução Social e a Saúde: elementos te´roicos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: casa da qualidade, 2000 (Coleção Saúde Coletiva).