A saúde em tempos de dominação do capital financeiro

Ao apreciar, às vésperas do natal, a MP 656, que tratava de alíquotas da Contribuição do PIS/Pasep e da Cofins, entre outros assuntos correlatos, o Congresso Nacional inseriu um artigo modificando a Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080/90) para permitir a participação do capital estrangeiro na assistência à saúde. No dia 19 de janeiro de 2015, a presidente Dilma sancionou a Lei no 13.097, nascida da MP-656, sem vetar essa permissão.

De saída, deve-se registrar que se trata de uma inequívoca afronta à Constituição federal (CF), que, no § 3º do seu artigo 199, diz: “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”. A Lei no 8.080/09 previa, como exceções a essa interdição, as doações de organismos internacionais e o financiamento de serviços de saúde, sem finalidade lucrativa, destinados aos empregados de empresas estrangeiras instaladas no país. A nova redação do artigo 23 da Lei Orgânica, incluída na Lei no 13.097, não cria mais uma exceção. Contradiz frontalmente a Constituição.

Por isso, as entidades que defendem o Sistema Único de Saúde recorrerão ao Supremo Tribunal Federal para derrubar essa modificação legal. É preciso entender que a CF veda a participação do capital estrangeiro na saúde não por causa de qualquer sentimento xenófobo, mas sim porque a construção de um sistema universal – baseado na ideia da saúde como direito de cidadania – só é viável em um contexto em que se exerce a soberania. E como não existe um governo mundial, nem um sistema internacional de saúde, a cidadania só é assegurada no espaço nacional.

A sociedade brasileira optou por tratar a saúde como um direito, não como uma mercadoria. O avanço da mercantilização da saúde, com a entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde, representa a negação desse direito. Acrescente-se que o mundo vive uma época de predomínio do capital financeiro, em que os investidores têm ampla liberdade de realocar seu dinheiro, rapidamente, entre diversas atividades econômicas, independentemente do conteúdo ou da finalidade das atividades.

Se a saúde passa a ser menos lucrativa, os investimentos podem ser redirecionados, sem dificuldade, para outra área, mesmo que isso signifique provocar a desassistência para populações inteiras. Sem dúvida, os investimentos privados na saúde são uma realidade em todo o mundo, notadamente, na área de produção e comercialização de medicamentos, equipamentos e demais insumos para os serviços de saúde.

No Brasil, a Lei Maior assegura a liberdade à iniciativa privada na saúde. Essa realidade não é necessariamente ruim. Os recursos privados muitas vezes cumprem uma função social importante. No caso da saúde, em especial, nenhum país pode prescindir da indústria de insumos, embora todos precisem regulá-la de modo a que não sobreponha o interesse particular ao coletivo ou a lógica do lucro ao atendimento às necessidades de saúde.

No entanto, os países que têm sistemas universais de saúde, como a maioria dos países europeus, o Canadá, o Japão, a Austrália, não permitem que os serviços privados de assistência à saúde concorram com os serviços públicos. Há uma clara separação entre os dois para se evitar a drenagem de recursos públicos para o sistema privado e a desigualdade no acesso e na utilização dos serviços de saúde.

No nosso país, não há essa separação, os serviços privados concorrem com os públicos e se beneficiam de uma série de subsídios governamentais, que tornam o sistema de saúde brasileiro um dos mais iníquos do mundo. Os defensores da participação do capital estrangeiro na assistência à saúde argumentam que, com isso, serão ampliados os investimentos em hospitais com a consequente expansão da oferta de serviços. Trata-se de uma meia-verdade.

De fato, o que tem acontecido é o aumento da aplicação de recursos em serviços voltados para a clientela que pode pagar mais, a qual passa a utilizar de modo mais intensivo as tecnologias de saúde – onde se consegue o maior retorno financeiro. Assim, as pessoas que já têm acesso aos serviços privados passam a realizar mais exames e procedimentos, sem que as pessoas que não têm acesso passem a ter. Nesse sentido, a participação do capital estrangeiro aumenta a iniquidade na saúde.

Argumentam ainda que a concorrência aumentará, o que contribuiria para melhorar a eficiência dos serviços. Na prática, contudo, o que vem ocorre ndo indica o contrário. Na área dos serviços de apoio diagnóstico e terapêutico (laboratórios clínicos e serviços de imagem), por exemplo, assiste-se a um intenso processo de concentração com poucas grandes empresas, passando a dominar o mercado. Também no caso dos hospitais, assiste-se à conformação de grandes grupos empresariais, proprietários de muitos estabelecimentos.

Assim, ao invés de mais concorrência, é um processo de formação de um oligopólio que está em curso e será acelerado com a entrada do capital estrangeiro. O terceiro argumento dos defensores da participação estrangeira é o de que a nova redação do artigo 23 da Lei no 8.080/90 tem o mérito de reconhecer uma realidade existente, o que melhoraria as condições de sua regulação.

A primeira parte deste argumento é um sofisma: nenhuma lei é boa ou ruim por reconhecer uma realidade (legalizar o comércio de entopercentes, por exemplo, não se justifica pelo fato de existir o tráfico de drogas). A segunda parte, ainda que de forma mais sutil, também é falsa. A nova redação não contém nenhuma restrição à participação do capital estrangeiro, que justifique qualquer iniciativa de regulação governamental, além das que já existem para todos os serviços de saúde. A participação está permitida e ponto.

Não há menção a nenhum tipo de obrigação das empresas estrangeiras no que se refere ao atendimento às pessoas, nem há nenhuma salvaguarda para os usuários dos serviços de saúde. Na verdade, essa modificação legal atende exclusivamente à preocupação dos investidores internacionais com a segurança jurídica dos seus investimentos. Não queriam continuar correndo o risco que estavam correndo, até o dia 19 de janeiro próximo passado, de algum governo resolver cumprir o § 3º do artigo 199 da Constituição.

Dessa forma, essa nova medida legal tem as marcas digitais do capital estrangeiro, mas tem pouquíssimo de saúde. Enfim, as consequências da manutenção desse novo dispositivo legal são sérias. Além de comprometer o exercício do direito à saúde, a participação do capital privado na assistência aprofundará a segmentação do sistema de saúde, contribuindo para que o acesso e a qualidade dos serviços variem de acordo com a capacidade de pagamento das famílias. Desse modo, aumentará a desigualdade social no nosso país. E desigualdade, como está cientificamente provado, faz mal à saúde de todos.

Agora, a esperança de que seja preservado o princípio da saúde como direito e de que seja possível continuar sonhando com um sistema de saúde igual para todos se volta para o Supremo Tribunal Federal, guardião da nossa Constituição.

* Luis Eugenio de Souza é presidente da Abrasco