Querem matar o SUS-2: EMBRASUS neles!

Paulo Capel Narvai (*)

A tese de um sistema único de saúde (SUS) como uma grande organização unitária, de abrangência nacional, serviços de propriedade exclusivamente estatal e, portanto, profissionais de saúde vinculados funcionalmente à administração direta do governo federal, não teve o apoio dos delegados à 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e sequer foi cogitada por um número significativo dos constituintes de 1988. Nos dois casos propunha-se a criação de um SUS sob controle público, que assegurasse o direito de todos à saúde, no contexto histórico de hegemonia burguesa e modo de produção capitalista. O SUS foi proposto, portanto, como uma política pública de saúde, para uma sociedade capitalista – a que tínhamos concretamente naquele período no Brasil –, não para uma sociedade socialista. Na cabeça dos socialistas brasileiros do final do século XX, o que seria um sistema de saúde em uma sociedade socialista seria delineado no momento histórico oportuno.

Desde então, o desafio posto aos SUSistas, em suas batalhas contra os SUScidas, tem sido o de viabilizar o SUS, buscando criar e encontrar possibilidades para tornar factível, no capitalismo ferocíssimo que vige no Brasil, o direito universal à saúde. Logo em seguida à criação do SUS ruiu a União Soviética e veio abaixo o Muro de Berlim. Com o fim da Guerra Fria vieram a restauração capitalista na China e no Vietnã, o “período especial” em Cuba, as viradas em Angola e Moçambique…

Para o SUS vieram… as Organizações Sociais (OS).

Neste ano em que realizamos a 15ª Conferência Nacional de Saúde, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 16/5/15, que é constitucional que recursos públicos sejam transferidos para organizações sociais. Por 7 votos a 2, os ministros entenderam que entidades da área de saúde e educação, por exemplo, podem receber dinheiro do governo para auxiliar na implementação de políticas nas áreas em que atuam. A denominada Lei das Organizações Sociais (9.637/98) teve voto favorável do ministro relator de uma ação impetrada em 1998 que questionava, principalmente, a dispensa de licitação em contratos entre a União e as OS. A decisão do STF encerrou um debate que se estendeu por quase duas décadas, exigindo da União, e por analogia dos demais entes federativos que, ao contratarem OS, cuidem da observância dos critérios de fiscalização previstos no Art. 37 da Constituição Federal, que determina obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A decisão também confirma o poder do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União (TCU) para fiscalizar a aplicação dos recursos transferidos às OS.

As OS vieram, portanto, para ficar. Com a decisão do STF será inútil bradar contra sua presença no SUS.

O que isto significa, porém, para o SUS sob controle público? As OS seriam a melhor opção para organizar um sistema de saúde como o SUS? O que significa transferir dinheiro público para pessoas jurídicas de propriedade particular? Quem são essas pessoas jurídicas?

A origem mais remota das OS brasileiras com atuação na saúde são as entidades beneficentes, criadas sobretudo na virada do século 19 para o século 20 e nas primeiras décadas do século passado. Criadas, portanto, em uma época histórica em que o Estado Brasileiro era do tipo liberal clássico e negava tudo aos trabalhadores. Sem direitos (aposentadorias, pensões, auxílios…) e sem proteção social confiável, os trabalhadores, notadamente os de imigração recente e seus descendentes, trataram de organizar entidades beneficentes para lhes proporcionar o que o Estado lhes recusava. Combinavam essas organizações com lutas gerais por direitos sociais, conforme é amplamente conhecido. Foi este movimento que deu origem, em São Paulo, ao Hospital de Beneficência Portuguesa (1859), ao Hospital Matarazzo (1878), à Sociedade Beneficente de Senhoras, embrião do Hospital Sirio-Libanês (1921). E um pouco mais tarde, já no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, à Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein (1950). Essas OS, identificadas como organizações filantrópicas, obtinham fundos em sorteios, festas, bingos, doações. Ganharam terrenos e equipamentos. Conta-se que Hans, filho de Albert Einstein, doou dinheiro e um relógio do pai para ajudar nos esforços de consolidação daquela OS. Com exceção do Hospital Matarazzo, que encerrou atividades nos anos 1990, essas OS vem sendo geridas segundo um padrão ético definido por seus criadores. Mantém atualmente vínculos com o SUS e prestam serviços públicos relevantes nas comunidades em que atuam. Conheço e convivo com vários profissionais que trabalham nessas instituições e sei do que falo.

Contudo, essas OS pouco têm a ver com o que se vê atualmente, em que muitas OS são de origem obscura, sem história social e de propriedade nebulosa, e amealham dinheiro público em operações de gestão sem transparência e à margem de qualquer controle efetivo pelos conselhos de saúde. São OS picaretas, que têm donos, os quais não veem conflito ético em fazer negócios com o cuidado em saúde. Não as move o princípio ético da caridade, da proteção por meio da filantropia. São, conforme o jargão dos gestores da saúde, entidades “pilantrópicas”. Como explicar, por exemplo, que uma OS com sede em São Paulo, assuma a gestão de serviços, e até mesmo de sistemas locais/municipais, de saúde em locais tão distintos quanto cidades do interior paulista e mineiro, e mesmo Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Natal?

Não obstante, as OS estão seduzindo corações e mentes da maioria dos gestores do SUS, que creem ter encontrado, nelas, as soluções para problemas administrativos, de gestão de pessoal, compras, terceirizações e, sobretudo, para driblar os impedimentos da LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal (101/2000), cujos artigos 19 e 20 estabelecem que “a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida” fixados em 50% para o governo federal (40,9% para o poder Executivo), 60% para os Estados (49% para o Executivo) e 60% para os municípios (54% para o Executivo). Essas restrições às despesas com pessoal atingem fortemente o setor Saúde (e também a Educação) cujos orçamentos são muito onerados (em torno de 70% a 80%) pelo item pessoal. Ou seja: ferem o SUS, asfixiando-o orçamentariamente. Nesse contexto, transferir recursos para OS é visto como um “jeitinho” de contornar a lei. O “jeitinho” seduz SUSistas (aqueles que de fato agem para viabilizar o sistema) e SUScidas (aqueles que desde a criação do sistema, em 1988, lutam contra, sabotando-o e sucateando-o).

Mas, um sistema como o SUS pode ser gerido com base em ‘jeitinho’? Com serviços e trabalhadores precarizados? Que tipo de edificação social se constrói com base em tais ‘puxadinhos’ organizativos? São perguntas que seguem sem respostas, enquanto o SUS sobrevive às duras penas, subfinanciado, perdendo recursos a cada ano e, portanto, dispondo de serviços que comprometem a boa qualidade que se espera dos cuidados prestados pelo sistema.

Nesse cenário, não surpreende a decisão tomada pelo governo do Distrito Federal de, frente às dificuldades de gestão do SUS na capital da República, “ir ao governo de Goiás para ver como funcionam as Organizações Sociais na saúde goiana”, conforme noticiaram os jornais neste mês.

Em Goiás e na maioria dos Estados e Municípios, as OS vêm, crescentemente, ocupando o lugar da Administração Direta na gestão do SUS. Contudo, conselheiros de saúde de vários municípios têm denunciado algumas OS como empresas de fachadas, que abrigam a atuação de bandidos e máfias que vão se especializando em roubar dinheiro público. Essas práticas são facilitadas porque não há, de fato, controle público sobre a atuação dessas organizações. Os conselhos de saúde não conseguem obter informações relevantes, sob a alegação de que se trata de “propriedade privada”. As secretarias de saúde não contam com pessoal suficiente (e bem pago…) para controlar efetivamente a atuação das OS. Resta reclamar.

Pelo lado dos usuários e dos trabalhadores da saúde há problemas para os quais as OS, tanto as éticas quanto as picaretas, não representam solução alguma. Ao contrário, suas atuações com suas “autonomias de gestão” contribuem para aumentar esses problemas e comprometer o caráter sistêmico do SUS, em vários âmbitos. Para muitos trabalhadores da saúde, e também para vários gestores mais atentos, as OS não são solução para os problemas estruturais de gestão do SUS – que são justamente os principais problemas do sistema. Embora esses críticos reconheçam que OS podem ser boa solução para gerir teatros e equipamentos culturais locais, não ajudam a resolver os problemas de gestão do SUS. Podem, porém, exercer importante função na gestão de iniciativas filantrópicas e, assim, têm lugar no SUS. Por essa razão, entendem que as OS éticas devem ser respeitadas, bem como deve ser valorizado o trabalho que realizam.

Mais recentemente tem tomado corpo o debate sobre a necessidade de se criar instrumentos que tornem viáveis instâncias regionais de gestão do SUS, que se ocupem de redes de atenção e outros problemas de gestão impostos pela integralidade do cuidado e o enfrentamento dos gargalos relativos à atenção secundária e terciária, em situações que envolvem, necessariamente, conjuntos de municípios. O Brasil conta com cerca de 450 regiões que podem e devem operar como polos regionais de saúde que requerem a estruturação de órgãos igualmente regionais de gestão, envolvendo autoridades sanitárias da União, Estados e respectivos municípios, e a representação dos conselhos municipais de saúde das cidades que compõem essas regiões. Este é um problema estratégico de gestão que ultrapassa, em muito, a “solução-puxadinho” representada pelo “jeitinho” das OS.

Desde a criação do SUS está aberto o debate sobre a necessidade de se criar e consolidar uma Carreira Nacional do SUS, com os trabalhadores da saúde vinculando-se ao sistema, e não a esta ou aquela Prefeitura, a este ou aquele Governo Estadual. Mas atualmente são Prefeituras e Governos Estaduais que pagam os salários desses profissionais, que se sentem, na maioria das vezes, “funcionários da Prefeitura” e não do SUS. Por outro lado, prefeitos e governadores fogem dessa conversa sobre Carreira Nacional do SUS como o diabo da cruz. Este é outro problema estratégico de gestão, crônico, que também ultrapassa, em muito, a “solução-puxadinho” representada pelo “jeitinho” das OS.

Mas, com as OS seduzindo SUSistas e SUScidas, e com suas atuações agora amparadas pela decisão do STF, o que se deve fazer?

Reitero que vejo lugar no SUS para as OS éticas. Mas rejeito, frontalmente, as OS que, picaretas ou não, veem o SUS como apenas um negócio como outro qualquer e se consideram “empresa privada”. Não vejo lugar no SUS para tais OS.

O que fazer?

Seguir desenvolvendo a administração direta, modernizando-a, aprimorando e valorizando as carreiras da União, Estados e Municípios, investindo e qualificando os servidores públicos, pagando-os bem. Mas, enquanto a administração direta estiver sob os ditames do Decreto-Lei 200, de 1967, e seus derivados legais, não conseguirá lidar adequadamente com as exigências da gestão do SUS. São mínimas, por outro lado, as possibilidades de reversão das restrições impostas pela LRF. Ainda que se consiga viabilizar a taxação sobre grandes fortunas e ampliar os recursos fiscais e do orçamento da previdência para o SUS, colocando-os em patamares similares ao de países da Europa Ocidental (cerca de 7% do PIB), ainda que se viabilize a conquista dos 10% das receitas correntes brutas da União, mesmo que se consiga excluir os recursos da saúde da Desvinculação de Receitas da União (DRU), ainda assim não se resolverão os problemas estratégicos que mencionei (o da gestão regional e a carreira nacional), dentre outros. Mesmo que se consiga conter a sangria representada pela renúncia fiscal, via Imposto de Renda, em favor das empresas que vendem contratos coletivos de saúde e negociam ações na bolsa de valores, revertendo esses recursos para o financiamento do SUS, mesmo assim persistirão, dentre outros, os dois problemas estratégicos da gestão regional e da carreira SUS. Soluções por dentro da administração direta, como autarquias e fundações estatais, esbarram na LRF e no Decreto-Lei 200 e seus filhotes normativos-burocráticos.

O que fazer, então?

Ora, se o grande trunfo das OS é poder comprar e contratar com a agilidade requerida pelos gestores da saúde, vamos criar uma empresa estatal para o SUS, de abrangência nacional, sem fins lucrativos, nos moldes de outras empresas estatais, como os Correios, que sejam controladas pelos poderes do Estado e também pelas instâncias do controle social, e que possam comprar e contratar. Criar, desse modo, uma alternativa pública à privatização que as OS representam. Não seria uma empresa do tipo sociedade anônima, como o Banco do Brasil e a Petrobrás, por exemplo, mas poderia ter as características dos Correios, que realiza compras segundo regras públicas e contrata pela CLT, mediante processos seletivos públicos e sob amparo da legislação trabalhista.

Uma tal empresa de propriedade estatal teria como missão “apoiar o desenvolvimento da gestão do SUS em todo o Brasil”, na perspectiva de um compromisso ético-político com os princípios constitucionais da universalidade, integralidade e equidade. Seria uma empresa do SUS e para o SUS e que teria de conviver, harmônica e sistemicamente, com as instituições da administração direta federal, estadual e municipal. Por isso, para simplificar a comunicação, poderíamos denominá-la de EMBRASUS, ou algo assim.

À EMBRASUS seriam destinados, integralmente, os recursos provenientes da CPSUS, a Contribuição para o Financiamento do SUS (ver artigo que trata especificamente da CPSUS, intitulado “Querem matar o SUS: CPSUS neles!”) e a empresa ficaria incumbida, em linhas gerais, de contratar e disponibilizar profissionais de saúde para as instituições do SUS, de qualquer ente federativo, bem como comprar os equipamentos e insumos de que o sistema necessite. Se os Correios (e o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal etc.) são capazes de manter carreiras nacionais e gerir equipamentos e recursos em todo o território nacional, por certo que a EMBRASUS também o seria. Desse modo, a EMBRASUS rompe com o localismo e o regionalismo que marca a atuação das OS e, dado o porte econômico inerente à empresa, será potente o suficiente para enfrentar a disputa pelo futuro do SUS. Em bases éticas, recusando a transformação do cuidado de saúde em mercadoria, viabilizando o trabalho decente e a Carreira Nacional do SUS (na qual o trabalho em saúde seja visto também em sua dimensão de coletivos de trabalhadores que devem ser protagonistas do SUS), criando as condições para cogestão regional do SUS, opondo-se à precarização dos ambientes e relações de trabalho e tendo sua atuação controlada por conselhos de saúde e demais organismos interfederativos de gestão, como as comissões tripartite e bipartite, envolvendo a União, Estados e Municípios, representados pelos Conselhos de Saúde dos Estados (CONASS) e municípios (CONASEMS).

É possível seguir abrindo mão de uma solução nos termos da EMBRASUS. Mas é preciso avaliar com cuidado a quem isto interessa e as consequências para as expectativas e necessidades da população brasileira e, portanto, para o projeto do SUS, no contexto histórico das primeiras décadas do século XXI.
(*) PAULO CAPEL NARVAI é professor titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).