Estupros: propostas para o enfrentamento

Estupros: propostas para o enfrentamento (1) | Bárbara Salvaterra (2)

O estupro coletivo de meninas e mulheres, não é monstruosa exceção, mas horror diário contra trajetórias e vidas no estado do Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo, que exige urgentes ações governamentais e do SUS para o seu enfrentamento. No Rio de Janeiro, 1/5 dos estupros, notificados por unidades de saúde, são praticados por dois ou mais agressores. Em 2014, 7,6% das notificações de estupro de vítimas do sexo feminino, pelo SUS, foram contra bebês e crianças de 0 a 4 anos. Essa exata mesma proporção foi registrada pelas delegacias de polícia, o equivalente a 359 estupros contra crianças de 0 a 4 anos, do total de 4.725 vitimizações. A barbárie está entre nós, não na aberração distante, e sim na transformação cotidiana dos corpos, até mesmo de bebês, em objetos de dominação e lucrativo consumo. A reprodução dessa violência se dá através da divisão sexual do mundo, quando desde o nascimento o sexo feminino é destinado a tornar-se mulher pela sujeição à dominação masculina.

Os Estados Unidos, um dos raros países com pesquisas nacionais sobre estupro, revela que em 2014 ocorreram 85 mil estupros (completed rape) contra ambos os sexos, equivalente à taxa de 330/100.000 habitantes (3) . Ou seja, mesmo na maior economia mundial, com razoáveis índices de desenvolvimento social, a violência sexual chegou a atingir 1/5 da população feminina e 1/71 da masculina (4). No Brasil, foram 47.646 estupros registrados pela Segurança Pública, em 2014, equivalente a taxa de 23,5/100.000 habitantes. Porém, há estimativas de que o subregistro varie entre 35% e 90% do total de casos (5). De tal modo, temos cerca de um estupro a cada 10 minutos no país.

Tomemos como referência o próprio Estado do Rio, no ano de 2014, 2º no ranking nacional de registros de estupro por delegacias de polícia, com 5.923 casos, e com 8ª pior taxa, 34,5/100.000 habitantes. Das unidades de saúde pública, que notificam (6) bem abaixo da Segurança Pública, foram 1.499 notificações de estupros nesse estado, 1.361 dessas contra o sexo feminino, com taxa de 20,3 estupros para cada 100.000 mulheres, em 2014. Pelos dados da Segurança Pública, 45,5% das vítimas tinham entre 0 e 13 anos, com maior concentração na faixa de 10 a 13 anos (21,5%). As negras eram 56,8% do total das vítimas, e solteiras 76,6% (7). Pelos dados da Saúde Pública, 32,2% das vítimas tinham entre 0 e 13 anos, sendo a maior concentração na faixa de 14 e 17 anos (28,4%). Negras foram as vítimas de 59,6% das notificações válidas, e solteiras 61,1%. Os agressores desconhecidos predominam nos dados da Segurança Pública, seguido por pais/padrastos e parentes das vítimas. Para as vítimas notificadas na Saúde Pública, 45% dos agressores eram desconhecidos, 13,4% parentes, 8,5% parceiros íntimos/ex, e 33,1% outros conhecidos. Ainda pelas unidades de saúde, as profilaxias contra DSTs foram oferecidas em apenas 51,7% dos casos aplicáveis, os contraceptivos de emergência em 44,1% e a coleta de material para investigações policiais entre 1,9% e 5,1% dos casos. Ou seja, o protocolo a vítimas de violência sexual, que previne doenças, hospitalização, gravidezes não desejadas e óbitos, não é cumprido em considerável parte dos estupros notificados.

O caminho de retomada do processo civilizatório, que a comoção nacional pode nos levar, é o de enfrentarmos a violência de gênero e a cultura do estupro, responsabilizando todos os atores, em especial o Estado. Entre os agentes governamentais, as fragilidades da presença da Saúde nas redes de proteção e enfrentamento às violências sexuais precisam ser urgentemente alteradas através de 1) atuação intersetorial que enfrente, através de maciças campanhas e inclusão efetiva nos currículos escolares, a desigualdade e violência de gênero; 2) inclusão nos currículos universitários e técnicos, dos profissionais de saúde, dos métodos de prevenção e promoção de saúde de pessoas em situação de violência, em especial a violência de gênero (8), incluindo a população LGBT e a violência contra o sexo masculino ; 3) estabelecimento de políticas de Estado que garantam formação continuada, recursos humanos, atuação em rede intra e intersetorial; e 4) investimentos na melhoria da qualidade dos dados da notificação das violências pelo SUS, interligação desses à Segurança Pública, à Assistência Social e aos núcleos jurídicos especializados. Sem priorização política, teremos protocolos descumpridos, e apenas a persistência de louváveis profissionais, poucos mediante a amplitude do problema. Sem uma urgente e eficiente atuação do Estado, governos continuarão coniventes com a cultura do estupro e crianças permanecerão como as maiores vítimas.

Notas:

[1] Esse texto é resumo do subcapítulo Estupro em SALVATERRA, B. Meninas e Mulheres em Situação de Violência no Estado do Rio de Janeiro. 28/04/2016. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). UFRRJ/CPDA. 2016.

[2] Bárbara Salvaterra é Mestre em Ciências Sociais (UFRRJ/CPDA), Especialista em Violência em Saúde (ENSP/CLAVES), Especialista em Políticas Públicas para as Mulheres (University of Massachusetts) e Gestora Técnica do Estado do Rio de Janeiro.

[3] A pesquisa norteamericana categorizou os casos de rape and sexual harrassment em : Completed rape, 30%; Attempted rape, 23%; Sexual assault, 24%, Unwanted sexual contact without force, 6%; Verbal threats of rape and sexual assault, 18% Maiores. As taxas foram estimadas sobre a população de 2014 acima de 12 anos de idade. Os valores que apresentamos foram calculados sobre o total de 284.350 casos, em 2014, a uma taxa de 1,1/1000 habitantes acima de 12 anos. (US DEPARTAMENT OF JUSTICE, 2015).

[4] BLACK, M.C. Et al. The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS): 2010 Summary Report. Atlanta, GA: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention. 2011.

[5]  Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2015. CERQUEIRA, D.; COELHO, D.S.C. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Brasília, IPEA, março de 2014.

[6] Através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).

[7]  INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Dossiê Mulher 2015: ano-base 2014. Série Estudos 2. Rio de Janeiro: ISP, 2015.

[8] CAVALCANTI, L. F.; FLACH, R.M.; FARIAS, R.S. Atenção às mulheres em situação de violência sexual nos serviços de saúde do Estado do Rio de Janeiro. In O Social em Questão – Ano XV – nº 28, 2012. Págs. 99-124.