Há vida após o ajuste fiscal?

Pedro Manuel (UESPI)*, Mayara Secco (UFF)*, Laís Krasniak (UFSC)*, Mauricio Petroli (UFRJ)* e Natasha Kerr (UnB)*

 

 

O dia 31 de agosto de 2016 marcou a história brasileira como o início de um novo ciclo: a efetivação do golpe parlamentar-midiático provou que, para as elites hegemônicas, de pouco importa a democracia na iminência do questionamento dos seus privilégios. Diferentemente do golpe de 1964, quando a população sabia claramente quem eram seus “inimigos”, nós enfrentamos a alienação extensiva das massas proporcionada pela grande mídia. Porém, o inimigo atual continua muito bem posto, por mais que o oligopólio midiático manipule a opinião pública bradando a suposta necessidade de um ajuste fiscal. [1]

É inegável que sim, vivemos uma crise econômica e política. Decorrente da crise mundial iniciada em 2008, a economia brasileira recrudesceu, resultando em queda de arrecadação. Porém, o outro motivo para a diminuição na arrecadação foi justamente a medida adotada pelo governo para manter a economia aquecida: desonerações tributárias. Os benefícios concedidos às grandes empresas e indústrias foi crucial para o déficit dos cofres públicos. Torna-se no mínimo incongruente que esses setores digam que “não vão pagar o pato” ao mesmo tempo que propõem que a população sofra com a falta de dinheiro decorrente da não cobrança das suas contas. [2]

A base do ajuste fiscal se funda nessa lógica deturpada: o problema não é a baixa arrecadação, e sim os gastos elevados. Assim, é justificado que ocorram cortes em saúde, educação, previdência e o direito social que aparecer pela frente. O único fator que não entra nessa equação é a qualidade de vida da população. Em um país que convive com iniquidades arraigadas na sua construção, os investimentos sociais estatais são imprescindíveis e questionar o direito universal à saúde, por exemplo, é condenar uma parte considerável da população ao adoecimento e à morte. É comprovado que, em tempos de crise, o investimento em e manutenção de direitos traz benefícios no momento em que provê a população de condições básicas para a continuidade do seu projeto de vida. [3]

Com o impeachment, o ajuste fiscal, que já havia sido anunciado pelo governo do PT, pôde tomar uma forma muito mais agressiva e perigosa, materializando-se no Projeto de Emenda Constitucional 241/16. Essa PEC determina que o teto das despesas primárias a partir de 2017, e durante os próximos 20 anos, sejam calculadas a partir do valor referente ao ano anterior corrigido pela inflação. Isso significa em termos práticos que os investimentos em saúde, educação e qualquer outra área não poderão aumentar em relação ao ano anterior. Para a saúde, especificamente, isso significará uma perda de R$ 654 bilhões nos próximos 20 anos, segundo projeções realizadas por pesquisadores. [4]

Mais do que o subfinanciamento, essa PEC leva ao desfinancimento público. Considerar a inflação como única variável no cálculo do dinheiro destinado a cada área é deixar de lado o que deveria ser o norte dos trabalhos do Estado: as necessidades da população. [5] Apesar da inflação, a população cresce, envelhece, modifica seus arranjos, e isso tudo influencia nas suas necessidades. Dessa forma, conceber a PEC 241 é aceitar uma realidade onde o único setor considerado na alocação de recursos é o mercado, deixando o povo à parte da definição do seu futuro. É aceitar uma realidade onde o povo, e só esse, cumpre com seus deveres de pagamento de impostos e mesmo assim têm seus direitos negados, enquanto as grandes empresas continuam explorando a classe trabalhadora e promovendo concentração de renda e aumento das desigualdades.

A PEC 241 está prevista para ser votada no dia 17 de outubro e é a prioridade do governo golpista [6]. Aprovar a emenda funcionará como o pagamento aos setores que proporcionaram a efetivação do golpe e é uma dentre as inúmeras reformas propostas (trabalhista, previdenciária, etc). Porém, ela é sem sombra de dúvidas a mais importante e danosa ao povo brasileiro. Não só uma medida impopular, esse projeto significa a alteração da Constituição Federal Cidadã de forma a levar à contradições no seu texto base. Enquanto a assembleia constituinte determinou vários mecanismos para a garantia dos investimentos sociais, como a vinculação das receitas, um pequeno grupo que sempre foi privilegiado procura pôr um limite a esses investimentos e impedir qualquer esperança de melhoria na vida da população. Barrar a PEC 241 significa tomar para o povo as rédeas da condução do país e dizer não a qualquer retrocesso proposto por golpistas ou por quem quer que seja.

 

* Coordenação de Políticas de Saúde da DENEM

 

 

[1] https://www.facebook.com/denembr/photos/a.634091843362439.1073741826.634091810029109/912627025508918/?type=3&notif_t=notify_me_page&notif_id=1474426075296448

[2] https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/522701/OED0029.pdf?sequence=1

[3] http://jpubhealth.oxfordjournals.org/content/32/3/298.long

[4] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf

[5] http://www.retsus.fiocruz.br/noticias/representantes-do-controle-social-de-olho-no-futuro-do-sus

[6] http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/21/pec-do-teto-de-gastos-e-prioridade-para-o-executivo-diz-lider-do-governo-no-congresso