As origens da questão democrática na Saúde (2)

As origens da questão democrática na Saúde (2)[1]

Maria Eneida de Almeida[2]

 

É praticamente consensual entre os especialistas o diagnóstico de que, a partir da década de 60 vem piorando gradativamente o nível de vida da população.

CEBES[3]

 

No 1º Simpósio de Política Nacional de Saúde na Câmara Federal, realizado em outubro de 1979, foi lançado o documento original de fundação do Sistema Único de Saúde (SUS), pelo presidente do CEBES Sérgio Arouca: “A Questão Democrática na Área da Saúde”.

Esse é o documento histórico da fundação do SUS, escrito originalmente por intelectuais do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), José Luís Fiori, Hésio Cordeiro e Reinaldo Guimarães, e que foi aprovado e enriquecido por todos núcleos os filiados e movimentos sociais consultados, vinculados ao CEBES. O documento foi uma proposta consistente para reforma do sistema de saúde vigente a partir de um diagnóstico social dramático, cujo nível de vida da população brasileira piorava gradativamente com desemprego, baixos salários e péssimas condições de vida. Era consenso de que havia uma crescente miséria em todo território nacional, com aumento significativo da mortalidade infantil, doenças endêmicas (esquistossomose, Chagas, malária, desnutrição), emergência de novas doenças (câncer, doenças cardiovasculares, acidentes, violências), acidentes de trabalho e doenças mentais, bem como condições cada vez piores de saneamento, níveis nutricionais e poluição ambiental.

Ao mesmo tempo em que as condições de vida da população pioravam, os cuidados médicos extrapolavam os limites do razoável, com crescentes críticas à categoria médica acusada de destrato e descuido do povo frente às filas intermináveis do INAMPS e a má atenção médica que a população recebia quando conseguia ser atendida, permeada à segurança salarial da categoria médica, cujas reais causas das crescentes distorções políticas, ideológicas e econômicas começavam a aparecer. “As raízes últimas na anarquia instaurada na assistência médica e da insolvência sanitária da população: a mercantilização da medicina promovida em forma consciente e acelerada por uma política governamental privatizante, concentradora e anti-popular”.

A Política de Saúde da década de 1970 tinha fundamento absolutista e hegemonicamente privatista. A população, apesar de financiar um sistema de saúde que muito pouco ou quase nada lhe dava de retorno, jamais era organizada para apresentar as demandas e muito menos era consultada. Dessa forma os profissionais de saúde atendiam cotidianamente uma população cuja situação de saúde era péssima, com altas taxas de subnutrição e doenças infecciosas em graus alarmantes. Viviam uma batalha sem fim, pois as condições de vida precárias não favoreciam a saúde e muito menos a qualidade dos tratamentos. O modelo de assistência médica brasileira, não dava conta de atender a população de forma que avançasse nos tratamentos e muito menos na cura de uma grande parcela enferma da população.

Era preciso pensar, elaborar e construir um novo modelo de atenção à saúde. Um modelo que reconhecesse o caráter socioeconômico embutido nas condições de habitação, emprego, educação, nutrição, saneamento e todos os fatores que determinam a saúde de um povo. Era preciso se trabalhar de forma democrática na área da Saúde, prezar uma medicina democrática que pudesse dar conta de atender a população e pensar em saúde além de preservá-la, e não só pensar na doença. Em suma, era preciso pensar a saúde como um direito do povo brasileiro e não como lucro para empresas médicas e gestores da indústria da saúde.

E para enfrentar o desafio de uma nova forma de pensar Saúde, como direito e não como mercadoria, o documento que formulou uma plataforma de luta para a democratização da Saúde em todas as vertentes, propôs uma série de ações políticas indispensáveis como sustentação de uma proposta de transformação do sistema de saúde. A primeira dessas ações foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Se resgatar a história é “um requisito para os construtores do devir”, torna-se imperativo a compreensão da essência do documento que lançou de forma definitiva o Sistema Único de Saúde – SUS na estrutura do Estado brasileiro, no sentido de se afirmar insistentemente o lema original para se manter a construção permanente desse devir: “Saúde e Democracia”.

(continua)

 

 

Referências

CEBES. Projeto Memória e História do CEBES. https://cebes.org.br/categoria-documento/projetos/  Acesso em: 10/11/2016.

CEBES. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Documento: A Questão Democrática na Área da Saúde. Revista Saúde em Debate, nº 9, p.11-14, 1979.

MENDES, R. Patologia do Trabalho. 2ª ed. São Paulo: Atheneu, 2003.

[1] Escrito em 14 nov. 2016.

[2] Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Professora Adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó, do componente curricular de Saúde Coletiva do curso de medicina.

[3] CEBES. “A Questão Democrática na Área da Saúde”.