As origens da questão democrática na Saúde (3)

As origens da questão democrática na Saúde (3)[1]

Maria Eneida de Almeida[2]

 

As raízes últimas da anarquia instaurada na assistência médica e da insolvência sanitária da população: a mercantilização da medicina promovida em forma consciente e acelerada por uma política governamental privatizante, concentradora e anti-popular.

CEBES, 1979.[3]

 

Mais de cinquenta anos após uma dura realidade de miséria de grande parte da sociedade brasileira somada a uma tremenda iniquidade da população, a sociedade brasileira se vê ameaçada a um retorno cruel, agora com a PEC 241/55 que ameaça o retrocesso de gerações de profissionais que lutam pela justiça social e pela saúde da população brasileira e abre a perspectiva de um amargo regresso de miséria e muita dor.

Nos anos 1970 emergiu um grande desafio que abria uma nova forma de pensar Saúde, como “direito” do cidadão no enfrentamento de suas condições de vida e não como “mercado” que visava lucros na compra e venda da situação de saúde sem se importar nas condições de vida da população. Com esse fundamento de resistência à assistência médica que à época vigia e que a população recebia foi formulado um documento que se tornou o marco fundador do Sistema Único de Saúde – SUS, lançado no 1º Simpósio de Política Nacional de Saúde na Câmara Federal, realizado em outubro de 1979.

Com o título “A Questão Democrática na Área da Saúde”, elaborado por pensadores do CEBES e aprovado pela sociedade brasileira através dos movimentos sociais e profissionais vinculados à entidade, esse documento programático tornou-se um guia para o Movimento da Reforma Sanitária, pois trouxe a formulação de uma plataforma de luta para a democratização da Saúde, propôs uma série de ações políticas indispensáveis como sustentação de uma proposta de transformação do sistema de saúde hegemônico vigente, de caráter hospitalocêntrico, medicalizante e medicocentrado e estabeleceu diretrizes político-organizacionais para o sistema.

Dessa forma que o CEBES, como entidade fundadora do sistema de saúde brasileiro, o SUS, representava a expressão do desejo da população brasileira em democracia, cidadania e justiça social, para além do setor Saúde que se pautava, sobretudo no direito de todos e no dever do Estado. Isso era o contrário radical do que vigia à época, tanto na educação/formação de profissionais de saúde quanto na gestão do sistema que tinha como alicerce o regime ditatorial.

Neste documento, histórico e impressionantemente ainda atual, foram forjados os princípios basilares do sistema: universalidade, equidade, integralidade, com organização descentralizada e com um componente de extrema relevância para o que se vivia naquele momento, que era a participação popular nas decisões e definições políticas para o setor Saúde. Era consensual e imperativo que fossem ouvidas e atendidas as necessidades da sociedade na formulação de políticas de saúde. Dessa forma se poderia permear os interesses da sociedade em um sistema de saúde, de maneira a se capilarizar por todo o território nacional.

A primeira das ações propostas no documento-base para reformulação do sistema de saúde brasileiro foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como estratégia de enfrentamento de vários aspectos do sistema de saúde vigente que tinha uma política de saúde que “substituía a voz da população pela sabedoria dos tecnocratas e pelas pressões dos diversos setores empresariais”, que “acompanhava as linhas gerais de posicionamento socioeconômico do governo privatizante, empresarial e concentrador de renda, marginalizando cerca de 70% da população dos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico” e que ”reduziu ao mínimo os gastos em saúde pública, privilegiando a assistência médico-hospitalar curativa e de alta sofisticação”.

Diante de uma realidade antidemocrática, antipopular e profundamente cruel no setor Saúde, nas décadas de 1960 e 1970, o avanço constante de uma luta com aspirações que faziam face a um sistema de saúde socialmente justo foi imperativo, conforme se ampliava a conscientização dos profissionais de saúde, da sociedade brasileira, dos gestores do sistema e do congresso nacional. O lema “Saúde e Democracia” se fortalecia e se consolidava no ideário pautado na justiça social, na busca dos direitos dos cidadãos e dos deveres do Estado.

Se o cuidado à saúde da população é parte da estrutura do Estado brasileiro como afirma a Constituição Federal de 1988, atende a 100% da sociedade sendo que 80% dela é SUS-dependente, o que se espera com a PEC 241/55 que não seja a perspectiva de um amargo regresso e desesperador retrocesso na política de saúde dos últimos cinquenta anos, além de uma perspectiva política governamental privatizante, concentradora e antipopular? E em essência antidemocrática?

(continua)

 

Referências

CEBES. Projeto Memória e História do CEBES. https://cebes.org.br/categoria-documento/projetos/  Acesso em: 10/11/2016.

CEBES. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Documento: A Questão Democrática na Área da Saúde. Revista Saúde em Debate, nº 9, p.11-14, 1979.

[1] Escrito em 25 nov. 2016.

[2] Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e Professora Adjunto da UFFS – Campus Chapecó, do componente curricular de Saúde Coletiva do curso de medicina.

[3] CEBES. “A Questão Democrática na Área da Saúde”.