“Será que estamos nos alimentando com resíduos de glifosato nos alimentos que produzimos?” – entrevista com Antonio Andrioli

Pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) encontraram quantidades de glifosato cem vezes acima do limite seguro para consumo humano no estoque de trigo em um silo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e em um armazém da empresa gaúcha Unnilodi, que presta serviços à estatal. Segundo matéria da Rede Peperi, a equipe monitorou os dois estoques, de fevereiro a novembro de 2018. De acordo com a autora do estudo, o problema foi “pontual”. Mas o cebiano Antonio Inácio Andrioli, doutor com tese sobre soja transgênica pela Universidade de Osnabrück (Alemanha), alerta que o problema pode ser maior. “A matéria é importante por isso: aponta um problema que está velado na opinião pública“, afirma.

O trigo contaminado é oriundo de Pato Branco (PR) e seria de vários produtores cujos nomes não foram revelados. Ainda segundo a matéria, os grãos foram adquiridos pela Conab entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018. Segundo apurou a reportagem, boa parte dos grãos continua armazenada nos silos. São 1.650 toneladas em Marau (RS) e uma outra parte estocada em Ponta Grossa (PR). Em nota à reportagem, a Conab informou que o trigo contaminado com glifosato se encontra apenas no armazém de Marau. “Em uma das amostras retiradas do estoque em Marau os pesquisadores registraram concentração de 5,206 mg/kg de glifosato. O limite máximo de resíduo permitido é de 0,05 mg/kg, valor 100 vezes inferior“, aponta o repórter no texto.

Os moinhos não podem comprar trigo cujos parâmetros não se encaixam na legislação. “Se aconteceu é uma particularidade”, disse o presidente do Sindicato da Indústria do Trigo do Paraná (Sinditrigo-PR), Daniel Kümmel, ao repórter. Mas Andrioli, alerta, no entanto, que essa fiscalização (por parte dos moinhos) praticamente não existe.

O problema apresentado nessa reportagem não é algo pontual ou localizado. Essa infelizmente, tem sido a prática utilizada em várias regiões do país. Foi identificado no trigo, mas é muito mais comum no feijão e na soja“, afirma.

De acordo com o pesquisador, esse tipo de problema não ocorre só com o glifosato, principal ingrediente ativo de diversos herbicidas. “Embora esse seja o produto mais barato e que tende a baratear ainda mais com as crescentes proibições em vários países. Os casos de aplicação irregular de 2,4-D, Paraquat e, mais recentemente, o Dicamba (a última versão da soja transgênica é resistente a esse produto, o que gerou muita insatisfação nos produtores) são muito mais graves, pois a deriva (moléculas são facilmente transportadas por vastas regiões, atingindo plantações de vizinhos, cidades etc) é muito maior e mais grave. E, estamos apenas falando de produtos aprovados. Existem muitos proibidos sendo usados de forma indiscriminada“.

O caso do trigo contaminado aconteceu antes do atual governo tomar posse. Porém, só nos 10 primeiros meses de 2019, a atual administração liberou o uso de 380 agrotóxicos, um número recorde. Em fevereiro, a Anvisa concluiu a reavaliação toxicológica do glifosato e liberou seu uso no País. A Organização Mundial de Saúde considera o ingrediente potencialmente cancerígeno.

O pesquisador relata que o biólogo molecular francês Gilles-Éric Séralini constatou câncer em ratos alimentados (com produtos que usaram herbicida com glifosato) em estudos desenvolvidos por mais de 2 anos. “Ainda bem que não comemos soja. Será que não? E, aplicar glifosato sobre trigo e feijão para facilitar a colheita é uma exceção ou já se tornou regra, inclusive com recomendação técnica? Será que isso acontece na nossa região? Será que estamos nos alimentando com resíduos de glifosato nos alimentos que produzimos?“, pergunta.

O discurso oficial do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é que a liberação recorde de agrotóxicos é necessária por conta do clima tropical do País. Em nota à reportagem da Rede Peperi sobre os silos com soja contaminada, o Mapa informa que “esse fato demonstra a necessidade de desencadear programas de fiscalização do uso de agrotóxicos pelos órgãos estaduais, que têm a competência legal para essa atividade“.

Então houve liberação recorde de agrotóxicos no Brasil sem um programa de fiscalização que acompanhasse eventuais abusos? “A fiscalização já era incipiente e vinha diminuindo“, diz Andrioli. “A mudança (rebaixamento) do grau de toxicidade (do glifosato) reforça a inexistência de controle por parte dos órgãos que deveriam exercer a fiscalização, especialmente o MAPA e o IBAMA que, antes agiam de forma oposta e agora se complementam na omissão em relação aos problemas ambientais gerados pela expansão das monoculturas no Brasil“, completa.

Para o pesquisador, as universidades e institutos públicos de pesquisa têm uma responsabilidade importante nesse momento: investigar esse tipo de problema e permitir que seus resultados estejam à disposição de uma publicidade crítica cada vez maior. “Isso num contexto de claros ataques a essas instituições por parte do atual governo federal, seja com cortes, sucateamento e tentativas de destruição da sua imagem perante a opinião pública. Precisamos de cada vez mais cientistas cidadãos, comprometidos com a qualidade da informação produzida e seu uso“, conclui.

Na reportagem, um agrônomo se manifesta preocupado com a contaminação do trigo, porque é do trigo que é feita a farinha para o pão, a pizza e o macarrão que come. “Imaginem se ele soubesse que a maioria dos alimentos industrializados que come utilizam lecitina de soja e amido de milho resistentes a glifosato (com alto nível de resíduos)?“, finaliza Andrioli.


Comentário de Andrioli sobre a expansão da área agrícola no governo Bolsonaro:

O Brasil está vivendo uma situação nunca antes vista em termos de destruição ambiental. A expansão das monoculturas tem destruído cada vez mais a natureza e isso repercute também no aumento da concentração de terras, do êxodo rural, da pobreza e da fome no campo. A transgenia permitiu a expansão de área para regiões antes não apropriadas para produção de monoculturas, com cada vez menos necessidade de trabalho e muito uso de agrotóxicos.

A produtividade, curiosamente, não tem aumentado proporcionalmente ao aumento de custos decorrente da adoção dessas tecnologias agrícolas. Para compensar isso, o aumento de áreas tem gerado a expansão para outras regiões, atingindo especialmente ecossistemas antes preservados e populações tradicionais inteiras. Esses custos sociais e ambientais não são considerados, por exemplo, no custo da soja.

Apenas para produzir 61 milhões de toneladas de soja, exportadas no ano passado, foi necessária uma quantidade de água que poderia abastecer 2,3 bilhões de pessoas no mundo. Esse é o déficit do agronegócio brasileiro que não se calcula. Imagine se calcularmos os gastos do sistema público de saúde em decorrência do uso de agrotóxicos… Isso é cada vez mais insustentável


Antonio Inácio Andrioli é autor do livro As Sementes do Mal. Ele é técnico em Agropecuária formado pela Sociedade Educacional Três de Maio (SETREM). tem Graduação em Filosofia pela UNIJUÍ (1998), Mestrado em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ (2000), Doutorado em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück/Alemanha (2006) e Pós-Doutorado em Sociologia pela Universidade Johannes Kepler de Linz/Áustria (2009). Ele é cebiano do núcleo Chapecó (SC). Em dezembro, viaja para Alemanha com objetivo de pesquisar Agrotóxicos no Rachel Carlson Center em Munique. Ele receberá o Prêmio Baviera de Proteção Ambiental 2020 pelas suas pesquisas contra Agrotóxicos e Transgênicos.