Joga pedra no SUS/Geni!? O papel da mídia em tempos de pandemia de covid-19

artigo escrito por Cristiane Lemos, integrante da Diretoria Ampliada do Cebes e co-coordenadora do núcleo Cebes Goiás

Salvo algumas exceções, o foco do jornalismo brasileiro sempre foi difamar o Sistema Único de Saúde (SUS), apresentando suas tragédias e omitindo-se em fazer um debate mais sério sobre suas reais potencialidades. A grande surpresa nesta pandemia é observar que a grande mídia tem adotado uma postura diferente, trazendo matérias que evidenciam o papel essencial de um sistema público de saúde diante deste cenário caótico. 

É uma novidade ver o SUS e seus profissionais terem seu valor reconhecido e jornais de grande impacto nacional divulgando importantes reflexões sobre o assunto. Outras boas novas foram as entrevistas públicas do ex-ministro Mandetta vestindo o jaleco do SUS, pesquisas demonstrando maior respeito à saúde pública pela classe média e alta e até homenagens públicas de rede de supermercado e times de futebol reconhecendo sua importância. 

A existência de um sistema único junto a outras políticas sociais foram fundamentais para inserir o Brasil entre os países do mundo que mais aumentaram a expectativa de vida ao nascer e na redução da mortalidade infantil. Para além de assistência médica em hospitais e unidades de saúde, o SUS oferece uma infinidade de serviços desconhecida por muitos, como por exemplo, a produção de medicamentos e vacinas, pesquisas, a vigilância epidemiológica e sanitária. 

Apesar da notória contribuição para a vida do brasileiro, o SUS ainda convive com mazelas e dificuldades estruturais que precisam ser seriamente enfrentadas. E acreditamos que a mobilização da mídia e da população para a sua defesa seja um dos pontos estratégicos para seu fortalecimento. 

Há uma máxima que diz “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”. E há certo consenso entre os especialistas da área da economia da saúde que sua problemática central é o processo de subfinanciamento crônico, pois desde sua criação em 1988 as verbas destinadas ao seu funcionamento são insuficientes. Destaque para a aprovação da Emenda Constitucional 95 (reconhecida como PEC da Morte) em 2018, pelo governo Temer, que agravou ainda mais o problema financeiro congelando recursos por 20 anos e retirando bilhões a serem destinados ao orçamento da saúde. 

A experiência internacional demonstra que países com financiamento adequado têm sistemas de saúde públicos mais eficientes. Na Inglaterra, por exemplo, o NHS (National Health System) é um orgulho para a maioria do seu povo, tendo sua bandeira estampada até nas olimpíadas de 2012. Importante situar que o hospital público St Mary, em Londres, foi local de nascimento do príncipe Willian e depois dos seus três filhos. Mais recentemente o primeiro ministro Boris Johnson, que contraiu a Covid 19, também foi socorrido pelo sistema de saúde público inglês. 

O SUS ao contrário do que muitos imaginam não foi um projeto pensado para incluir apenas os pobres. Baseado nos princípios da universalidade, igualdade e integralidade destina-se a todos os cidadãos, sem distinção de raça, cor ou situação financeira. 

Mas convenhamos que este não é um projeto tranquilo num país marcado por uma histórica desigualdade social. Para os brasileiros seria algo muito estranho ver filhos de presidentes nascerem em hospitais públicos. Embora os mais endinheirados usem o SUS sim, a exemplo de Roberto Marinho que recentemente realizou uma cirurgia de transplante gratuitamente pelo SUS.  

O SUS tem como objetivo fazer as pessoas viverem mais e melhor, e, neste sentido, seu foco central não deve ser a cura de doenças, mas a articulação e execução de políticas de promoção de saúde. A priorização da atenção básica com elaboração de programas de prevenção como, por exemplo, a criação de academias de saúde ou a educação em saúde em escolas e outros espaços públicos devem ser a centralidade. 

Há de se reconhecer que uma gestão que privilegie a promoção da saúde pode desencadear uma verdadeira revolução na vida do povo brasileiro. Com menos doenças, a produção de medicamentos seria desacelerada e não haveria necessidade de tantas farmácias. Consequentemente a demanda por planos de saúde, hospitais e até de cursos da saúde diminuiria. Com certeza haveria impactos negativos na lucratividade do mercado da saúde que é um dos mais rentáveis do mundo. 

O que devemos nos perguntar é: seria ético que saúde seja objeto de lucro? Seja algo a ser consumido somente por aqueles que podem pagar? O SUS se fundamenta na ideia da saúde como direito e não como uma mercadoria a ser acessada pelos privilegiados. O cuidado à saúde não pode ser uma opção para uma minoria, mas um direito social e coletivo garantido em lei. 

Nesta perspectiva defender o SUS é defender o valor da vida e da dignidade humana. Todo brasileiro usa o SUS, mesmo que não esteja ciente disto. De cada 10 brasileiros, cerca de sete depende exclusivamente da assistência médica do SUS. Vivemos uma grande tragédia na pandemia, mas seria possível imaginar o tamanho do problema, caso não existisse o SUS hoje? 

Alguns sanitaristas comparam o SUS à Geni da música de Chico Buarque. Muitos brasileiros jogam pedra no SUS/Geni, falam mal e ridicularizam, mas quando a necessidade aperta é o SUS/Geni é quem socorre a maioria que não tem como pagar pela assistência médica. 

Nesta pandemia ficou muito claro o papel do SUS e de seus profissionais para impedir que a tragédia se ampliasse sem limites. E a defesa do SUS é crucial para que o país avance. Mas como defender o SUS? Qual seria a contribuição da mídia e da população?  

Uma das questões mais cruciais para a consolidação do SUS é um movimento para barrar a Emenda Constitucional 95 que congelou os recursos da saúde. Outra possibilidade real é de desenvolver um jornalismo comprometido a apresentar o SUS para além de suas tragédias, além de estimular o debate e ações sobre novas fontes de recursos, como por exemplo, a auditoria da dívida pública e taxação de grandes fortunas. No geral também a população tem que estar atenta em eleger políticos que sejam contra a privatização do SUS e que colaborem para aprovar novas fontes de recursos. 

A pandemia que tanto nos aterroriza demonstrou a importância das políticas públicas de saúde neste momento. O reconhecimento do valor do SUS deve ser um estímulo para uma defesa ativa da população. A mídia tem um papel crucial em educar e despertar esta consciência. Não vamos mais jogar pedras no SUS/Geni. Vamos conhecer, defender e aplaudir esta grande conquista social!