O limite político das políticas sociais
Gustavo Souto de Noronha, Economista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e professor da Universidade Estácio de Sá

artigo de Gustavo Souto de Noronha, Economista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e professor da Universidade Estácio de Sá

Em 2016 o Brasil aprovou uma emenda à sua constituição que incluiu algo sem paralelo no mundo: um teto para expansão dos gastos públicos. A justificativa para tal medida é que o dinheiro tinha acabado. Não havia espaço fiscal para atender os direitos sociais esculpidos na constituição de 1988. Eis que em 2020, diante da maior pandemia que a humanidade enfrenta desde a gripe espanhola, o espaço fiscal surgiu, expandiu-se o gasto em saúde que vinha em queda e o congresso garantiu ao povo um auxílio emergencial para sobreviver à tempestade. Não existia dinheiro, existiu dinheiro.

Na verdade, o debate sobre a possibilidade de expansão dos gastos públicos tem sofrido uma reviravolta desde que em 2008, o então presidente dos EUA Barack Obama tirou trilhões de dólares da cartola e jogou na economia, sem gerar inflação. Houve muitas reviravoltas e polêmicas no debate econômico e destas ganhou força uma ideia chamada MMT, Teoria Moderna da Moeda em inglês.

Particularmente, o termo MMT talvez não seja o mais adequado a uma teoria que não é tão moderna assim, Abba Lerner nos anos 1940 chamou estas mesmas ideias de Finanças Funcionais. Dito isso, pouco importa a nomenclatura, mas a ideia de que as restrições a uma ampliação do gasto público para a construção de políticas que reduzam as mazelas do subdesenvolvimento em nosso país nunca foram fiscais. Obviamente que há constrangimentos de natureza econômica, inflação e restrição externa. Estas restrições não se aplicam a realidade brasileira atual. Temos uma situação confortável em reservas e estamos numa recessão com enorme capacidade ociosa (desemprego e plantas paradas). A principal ideia subjacente na discussão da MMT é a noção de que o emprego é um direito (está inclusive na declaração dos direitos humanos como tal) e de que o Estado pode arcar com saúde, educação e o que mais for necessário ao bem estar de todas e todos.

Esta ideia, contudo, não chega ao debate público sem oposição. Há dois principais tipos de críticas. Uma vinda daqueles que podem ser chamados de “Discípulos do Deus Mercado” é outra de críticos do capitalismo. Tais críticas que pretendemos discutir a seguir.

As críticas dos acólitos do Mercado foram sintetizadas pelo economistas marxista polonês Michal Kalecki numa palestra depois publicada como artigo (Aspectos Políticos do Pleno Emprego). No texto Kalecki explica didaticamente porque os capitalistas se opõem a qualquer iniciativa de política econômica que possa garantir o pleno emprego numa sociedade capitalista. Repare, tecnicamente não é inviável o capitalismo de pleno emprego, sua impossibilidade é política! De acordo com Kalecki, são três as razões pelas quais o capital se opõe ao pleno emprego.

A primeira, a argumentação de que num sistema de livre mercado o nível de emprego depende sobretudo da confiança dos agentes. Uma crença quase mitológica numa espécie de “fada da confiança”, figura já comum em vários textos críticos a tal noção. “Isso dá aos capitalistas“, diz Kalecki, “um poderoso controle indireto sobre a política governamental: tudo o que pode abalar o estado de confiança deve ser evitado porque isso causaria uma crise econômica.” Daí vêm chantagens políticas como o teto dos gastos e a PEC emergencial (PEC 186/2019).

O segundo ponto diz respeito à direção do gasto público, e tem duas perspectivas, uma prática outra de princípio. A prática diz que o capital não quer concorrência, quer expandir a apropriação da Mais Valia ao máximo possível. Por isso a privatização de tudo. Pense num sistema público de saúde eficiente, funcional. Por qual razão alguém iria querer plano de saúde ou hospital privado? O mesmo na educação, se pública e de qualidade, seria viável o ensino privado? O setor público retira do privado espaços de exploração do trabalho e acumulação de capital. Por isso a PEC 186! Todavia, há ainda a questão de princípio que envolve a direção do gasto público. Transferências às famílias não competem diretamente na apropriação da Mais Valia com o capital, mas rompem o princípio moral básico do capitalismo: “você deve ganhar o seu pão com seu suor”.

A terceira oposição do capital ao emprego como direito vem da boa e velha luta de classes. Uma sociedade de pleno emprego empodera a classe trabalhadora, aumenta seu poder de barganha pois não há ameaça da demissão como medida disciplinadora para o capital impor ao trabalho! Em bom e claro português: o desemprego coloca a classe trabalhadora no seu lugar. E neste sentido a MMT/Finanças Funcionais é fundamental para demonstrar ao conjunto dos trabalhadores que o desemprego é sempre uma escolha política do capital!

Por outro lado, os críticos do capitalismo acusam quem defende a ideia do gasto público funcional de querer reformar o irreformável capitalismo. Ora, a MMT nos ajuda a demonstrar que não é por impossibilidade técnica a situação de penúria do/a trabalhador/a, é uma reiterada escolha do capital! O capital só cede a políticas como a macroeconomia keynesiana ou o Estado de Bem-estar social diante de ameaças existenciais como foi a URSS com todos os seus defeitos. E é por ver uma ameaça existencial na COVID ou nas mudanças climáticas que setores do capital cedem a uma maior atuação estatal nestes casos.

Deste modo, ao contrário do que supõem os críticos marxistas da MMT, defender a ideia das Finanças Funcionais está longe de ser um simples reformismo. Agitar bandeiras como a MMT ajuda de sobremaneira a classe trabalhadora porque ressalta as persistentes escolhas de classe feita pelas elites. Nos arma para explicar ao povo que sua miséria não é inexorável, mas escolha política. Demonstra que o Estado serve ao capital! E com esta educação política e econômica podemos constituirmo-nos uma ameaça existencial ao sistema capitalista!