Doenças crônicas: artigo expõe a influência da indústria nas Nações Unidas

Um artigo publicado em 25 de agosto pela editora de investigação do British Medical Journal, Deborah Cohen, coloca em pauta uma questão delicada: a influência da indústria sobre as deliberações do Conselho das Nações Unidas (órgão da ONU) para doenças não-transmissíveis (NCDs, na sigla em inglês). O Conselho irá se reunir em Nova York nos dias 19 e 20 de setembro. No entanto, foi cancelada uma rodada preliminar de negociações que integraria um documento com compromissos que exigiam progressos em quatro NCDs: doenças cardiovasculares, respiratórias, câncer e diabetes.

Os fatores de risco para essas doenças atraíram as atenções do mundo para as indústrias do álcool, do tabaco e alimentícia. A relutância dos Estados Unidos e da União Europeia ao endossar os compromissos econômicos mostram que a influência destas indústrias pode fragiliar a independência e o potencial do Conselho da ONU.

No artigo, Deborah Cohen questionou até que ponto as indústrias podem atrapalhar o Conselho da ONU para o assunto. Um dos exemplos mencionados no artigo está no cruzamento dos interesses industriais com a atual instabilidade econômica e o desemprego. Em seu texto, Deborah conta que quando a União Europeia discutiu a implementação do Traffic Light Labelling (uma maneira simples e intuitiva de orientar o consumidor para a escolha de produtos na composição de sua dieta seguindo as cores do semáforo de trânsito), as empresas tentaram persuadir os membros do Parlamento Europeu, afirmando que tais ações levariam inevitavelmente à limitação da indústria de alimentos e à perda de empregos, entre outras coisas.

– O lobby da indústria contra esta rotulagem chegou a ser chamada por ela de “ciência patrocinada”, usando artigos em jornais que poderia ter influenciado os legisladores. Resultado: o Traffic Light Labelling não foi implementado, afirmou Deborah.

A editora do BMJ salientou ainda que, na atual situação econômica mundial, qualquer investimento que tenha sido feito nos EUA e Europa – na maioria das vezes por investidores de vários países – pode não estar disposto a arriscar um aumento no desemprego às custas da saúde pública de países de média e baixa rendas.

– Um professor de Economia do Sistema de Saúde já chegou a sugerir que a redução do consumo de carne vermelha no Reino Unido diminuiria os rendimentos dos fazendeiros em todo o mundo, resultando em perda de empregos, aumento da pobreza, e possivelmente mais problemas de saúde do que o consumo de carne vermelha poderia causar, disse Deborah.

A Organização Mundial de Saúde chegou a declarar que as NDCs são as “doenças da pobreza” e devem ser atacadas como “determinantes sociais da saúde”. Juntas, as quatro principais doenças são responsáveis por mais da metade do número total de óbitos de países com baixa e média rendas. Entretanto, a Secretaria de Estado para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido publicou uma carta em maio deste ano afirmando que “as pessoas que sofrem de alguma NDC representam 20% da população”. O jornal The Lancet chegou a corrigir esta declaração, mas Deborah Cohen lembra que a desinformação é recorrente a respeito deste assunto.

As recentes mudanças nos documentos das Nações Unidas refletem os interesses da indústria alimentícia, segundo Deborah. O G77, grupo de países em desenvolvimento mais a própria ONU, quer que sejam reduzidos os teores de gordura saturada, açúcar e sal de alimentos processados. Entretanto, União Europeia, Canadá, Austrália e EUA resistem a esta recomendação.

O artigo de Deborah Cohen também cita um acadêmico não identificado que escreveu: “note que as provas baseadas em normas reguladoras para o álcool estão sendo apagadas e as normas das indústrias favorecidas sendo substituídas. Essas mudanças carregam a marca da indústria de bebidas e são o resultado do forte lobby em Nova York”. Ao mesmo tempo, países produtores de tabaco do G77 já se manifestaram no sentido de que não reconhecem qualquer conflito de interesse entre a indústria e a saúde pública. Além disso, eles se recusaram a assinar a Convenção-Quadro de Controle do tabaco.

A ideia de estabelecer parcerias entre governos e indústrias ou organizações não-governamentais (ONGs) também é encarado como um obstáculo, pois podem prejudicar os negócios. As bases para esta preocupação ficaram evidentes em junho durante um encontro com representantes da sociedade civil onde instituições da sociedade expressariam suas ideias sobre as negociações. Entre os participantes, estavam representantes de federações e alianças dos setores farmacêutico, alimentício, de bebidas e esportivo. Para a reunião deste mês, a delegação do EUA inclui representantes do Grupo de Consumidores Globais de Álcool.

Obviamente, não apenas a indústria mas também políticos possuem seus próprios interesses, que envolvem obtenção de votos e o estabelecimento de prioridades relacionadas a outras crises. Especialistas e acadêmicos de grandes instituições americanas e europeias afirmam que as doenças crônicas não são prioridades de ninguém. Eles lembram que menos de 10% do orçamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) – a maior apoiadora para a resolução dos problemas causados por tais doenças – é dedicado às NDCs. Eles dão três exemplos de conhecidas e efetivas intervenções para se trabalhar:

– Aumento dos impostos do tabaco e do álcool para reduzir o consumo e aumentar as receitas dos governos;
– Dobrar o preço de bebidas alcoólicas para diminuir a mortalidade relacionada em 35% e acidentes de carro em 11%;
– Redução do sal para reduzir riscos de doenças cardiovasculares e aumento da pressão arterial, economizando bilhões de dólares nos custos anuais de tratamento.

Ao contrário do HIV/Aids, que possui consequências sociais fortes, a defesa por parte dos jovens em relação às doenças não-transmissíveis tem sido descrita como “maçante”, “sem inspiração”, “que falta ênfase na justiça social ou na equidade” e “que falta indignação e urgência contra a ausência de ação”.

Em recente reunião em Nova York, as negociações para determinar ações relativas às NDCs foram bloqueadas depois de um lobby feito por representantes das indústrias alimentícias, de bebidas, do tabaco e farmacêutica, o que paralisou as discussões. Segundo as autora, a percepção que se tem é que estas reuniões são um campo de batalha, colocando o interesse público contra os poderosos interesses privados.

A versão original do artigo (Will industry influence derail UN summit?) em inglês e na íntegra, de autoria da jornalista Deborah Cohen. Clique aqui.

Fonte: BMJ