A economia do fim do mundo

Revista Carta Capital – 02/12/2012

O planejamento do uso dos recursos naturais e energéticos é o único modo de combater uma cultura de desperdício que começou a ser desenhada no período do pós-guerra

POR DAL MARCONDES

OS ESTADOS UNIDOS emergiram da Segunda Guerra Mundial como a única grande economia que não teve sua indústria arrasada por bombas. O cenário era um parque produtivo superdimensionado, a economia global em frangalhos e milhares de soldados a voltar para casa. O que fazer para não voltar à recessão anterior ao conflito, quando hordas de desempregados vagavam em busca de trabalho e comida? A ideia, aparentemente genial, veio de um consultor norte-americano especializado em varejo, Victor Lebow, que viu na aceleração do ciclo de produção e consumo a saída para o impasse:”Nossa economia enormemente produtiva requer que façamos do consumo o nosso modo de vida, que convertamos a compra e o uso de mercadorias em rituais, que busquemos a nossa satisfação espiritual ou do nosso ego no consumo. Nós precisamos de coisas consumidas, destruídas, gastas, substituídas e descartadas numa taxa continuamente crescente”. E isso foi feito, a ponto de 99% dos produtos vendidos pelo comércio nos EUA terem sido abandonados no fundo de armários ou gavetas, ou simplesmente descartados em apenas seis meses.

A economia do consumo substituiu a “economia do abastecimento”, quando as pessoas compravam o que precisavam e o objetivo era vender mais, para mais gente. Nossos avós compravam produtos duradouros para se dedicar a outras atividades e não retornar sempre às compras para repor bens cuja obsolescência foi planejada em laboratório. “Da mesma forma que se planejou a sociedade de consumo, é preciso planejar que tipo de economia vai desconstruir essa armadilha em que nos metemos”, explica o economista e professor da PUC-SP Ladislau Dowbor. Há diagnósticos realizados e metas estabelecidas sobre o que há de errado com o modelo econômico atual, que mantém cerca de um terço da humanidade sem acesso a direitos universais como educação, água e saneamento, alimentos e habitação. No entanto, há uma crônica falta de planejamento sobre como mudar a produção e o consumo em direção a uma economia de baixo impacto ambiental e dentro das metas nacionais e globais de redução de emissões de carbono.

Não há dúvida de que a economia deu grandes saltos nesses 50 anos, com o desenvolvimento de tecnologias e materiais extremamente avançados. No entanto, as curvas de crescimento da população, do Produto Interno Bruto, da extinção de espécies, do uso de combustíveis fósseis, da redução de florestas e da sobrepesca mostram que os níveis de exploração do planeta e os impactos causados pelas atividades humanas vêm crescendo de forma exponencial nos últimos 50 anos (gráfico à pág. 98). Isso ocorre apesar do aumento da eficiência no uso de matérias-primas e energia no mesmo período. Os carros dirigidos por nossos avós continham mais materiais (eram mais pesados) e consumiam mais combustível do que qualquer outro nas ruas de hoje. Porém, o volume de combustível utilizado hoje pela humanidade é centenas de vezes maior do que 50 anos atrás. “A ecoeficiência na produção tem caminhado a passos largos, mas o modelo de economia baseado no ciclo de aceleração do consumo e descarte apenas aumenta o impacto sobre os ecossistemas e não reduz as desigualdades sociais”, explica o professor da Faculdade de Economia da USP Ricardo Abramovay.

 

A necessidade de consumir cresceu com o conceito de obsolescência programada

A modificação desse quadro passa pelo planejamento do uso dos recursos naturais e energéticos. “Algumas pessoas diriam que isso é socialismo”, diz Luiz Pinguelli Rosa, cientista e diretor do Coppe, órgão ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos mais respeitados centros de pesquisa em engenharia da América Latina. O especialista explica que a área de energia precisa de um planejamento com décadas de antecedência para evitar apagões.”Os investimentos são altos e os projetos demoram a entrar em operação. Muita coisa é deixada para a vontade do mercado.” O mercado, no entanto, não tem visão de futuro, busca soluções para manter a diretriz de crescimento em um planeta com recursos naturais finitos.”Essa filosofia de crescer por crescer só tem um paralelo na natureza, o câncer”, explica Ladislau Dowbor.

O consumo de matérias-primas atingiu 9 toneladas por habitante ao ano, diz ONU

A desigualdade na distribuição dos benefícios entre a humanidade é gritante. Nos anos 1950, a diferença de salários entre um operário da General Motors e seu presidente era cerca de 50 vezes. Hoje, em grande parte das empresas globais essa diferença entre chão de fábrica e alta direção pode atingir quase mil vezes. Os 20% mais ricos apropriam-se de 82,7% da renda. Os dois terços mais pobres têm acesso a apenas 6% da renda, e essa disparidade vem crescendo. Em1960, a renda apropriada pelos 20% mais ricos era 70 vezes maior do que a renda dos 20% mais pobres. Em 1989, essa diferença havia subido para 140 vezes. Para Dowbor, esse é o problema central a ser atacado, e fazer a economia crescer não passa nem perto de solucionar o problema ético da injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas. “Não haverá tranquilidade no planeta enquanto a economia for organizada em função de um terço da população mundial.”

O empresário Ricardo Young, ex-presidente do Instituto Ethos, organização que atua em responsabilidade socioambiental empresarial, afirma haver mudanças em curso na economia, ainda que “não uniformes”. Para ele, muitas empresas e governos estão não apenas preocupados, mas atuantes para reverter o quadro de degradação econômica e ambiental. “É o caso do Brasil, que tem conseguido ampliar a renda nas classes mais baixas e, também, tem exercido liderança global em temas ambientais, como as metas que o governo assumiu em relação às mudanças climáticas.”

Young alerta que é preciso saber identificar, na sociedade, os movimentos que buscam uma nova organização da economia, mais criativa, com menor impacto ambiental e maior benefício social. E essa tendência não é identificada apenas por militantes sociais ou economistas otimistas. Um estudo publicado pela revista inglesa The Economist concluiu que a ascensão das mulheres na sociedade nos últimos dez anos contribuiu mais para o crescimento global do que o desenvolvimento da China. Essa percepção levou a agência Goldman Sachs a indicar que diversas regiões do mundo poderiam aumentar seu PIB se reduzissem as desigualdades nas taxas de emprego de homens e mulheres. O Brasil poderia beneficiar-se ainda mais desse movimento de equilíbrio entre os gêneros no trabalho. Essa inclusão avança desde os anos 1970. Naquela época, as mulheres representavam 20% dos trabalhadores do País, índice que subiu para 44% no fim da primeira década do século XXI. Registre-se, ainda, que 35% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres.

O Brasil vive uma grande oportunidade para planejar seu desenvolvimento com base em questões bastante objetivas, como os investimentos superiores a 500 bilhões de dólares em andamento por conta dos grandes eventos esportivos dos próximos anos, as Olimpíadas do Rio de Janeiro, a Copa das Confederações e a Copa do Mundo de Futebol. Entretanto, é preciso integrar os esforços e mostrar certa lógica na direção dos benefícios desejados, como melhorar a mobilidade nas cidades e redirecionar esforços para uma sociedade estruturada em uma economia menos baseada em consumo e exportação de commodities e mais focada em desenvolver vetores como cultura, turismo, biociência, educação e conhecimento. No entanto, o País tem adotado nos últimos anos a mesma ortodoxia econômica com que o mundo tenta enfrentar a sucessão de crises que assola o planeta desde 2008, a de estimular o aumento do consumo sem exigir contrapartidas da indústria ou do sistema financeiro.

“O momento é especial para uma troca de gentilezas, o governo estimula o consumo, mas deveria exigir mais eficiência no uso de energias e matérias-primas”, explica o também economista Ignacy Sachs, que preconiza a necessidade de planejamento para adequar o modelo econômico à realidade do século XXI. Nas relações com o mundo, entre 1998 e 2008 as exportações brasileiras de commodities passaram de 20% para 35% do comércio exterior. Se de um lado isso elevou as reservas internacionais, de outro barateou as importações e desestimulou a indústria local, além de ampliar o impacto sobre as áreas naturais.

Segundo o diretor-geral do Programa de Meio Ambiente da ONU (Pnuma), Achim Steiner, o consumo global chegou a9 toneladas anuais de matérias-primas por pessoa, e isso para os atuais 7 bilhões de habitantes. Em um planeta com 9 bilhões de pessoas, o consumo per capita não poderá ficar acima de 5 ou 6 toneladas por habitante. Outra questão importante é o uso de energia por habitante, que, segundo o Departamento para Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, deveria ser limitado a 70 gigajaules por ano. Trocando em miúdos, isso significa que um europeu médio teria de cortar pela metade seu consumo de energia, enquanto um norte-americano poderia utilizar apenas 25% do que gasta atualmente. Já um indiano poderia multiplicar por quatro os 15 gigajaules que utiliza. O Brasil está no meio termo, com cerca de 50 gigajaules individuais por ano. Contudo, há que se levar em conta a desigualdade e o desequilíbrio no uso dessa energia.

O mundo atravessa uma confluência de crises, quando o desequilíbrio financeiro, ambiental e social oferece oportunidades para a construção de novos pontos de apoio. E a Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que ocorrerá em junho do ano que vem, pode ser um ponto de partida importante para a definição dessa estratégia. O jornalista e ambientalista Aron Belinky, que atua na articulação de demandas da sociedade civil para o evento, explica que empresas e organizações sociais estão mais avançadas do que governos na busca de soluções. “Temos de entender que a questão não é ambiental, como alguns acreditam, mas de modelo de desenvolvimento e de governança global.” Para ele, o poder público deve assumir compromissos de planejar uma saída dessa encruzilhada, olhar para o futuro e entender que há limites a ser encarados e respeitados. Porém, lembra que isso não significa estagnação, e sim um modelo de desenvolvimento focado em valores éticos e criativos, que dê às pessoas acesso aos direitos universais nesta e em todas as gerações futuras.