O MP e as irregularidades no financiamento da saúde em Minas: uma mensagem institucional de desestímulo

Por Thiago Lopes Coelho, Hernani Luís Chevreux, José Batista Neto e Jullien Dábini.

 

Garantir efetividade ao direito à saúde por meio da consolidação de um Sistema Universal foi, sem dúvida, um dos principais desafios postos pela Constituição Federal de 1988. Tarefa que, para ser alcançada, depende de um conjunto complexo de ações, que só se estabelecem diante de um compromisso claro com uma atuação estatal orientada para a consolidação de um Sistema Universal. Nessa linha, não há dúvidas de que um dos aspectos com maior capacidade de expressar esse compromisso diz respeito à disposição dos governos de construir e executar estruturas de financiamento ajustadas para o atendimento das necessidades em saúde da população.

A história do financiamento da saúde no Brasil (pós CF88), no entanto, é conturbada e evidencia, sobretudo, a falta desse imprescindível compromisso. A sua trajetória, no atual regime constitucional, denota, por um lado, empenho dos governos no sentido de evitar a vinculação de parte dos orçamentos públicos para a saúde. Por outro, denuncia que, quando superados os obstáculos e garantida a previsão legal vinculadora, passa-se, com obstinação, a mobilizar esforços na tentativa de limitar os efeitos da vinculação. No caso brasileiro, essas tentativas se concretizaram e, ainda, se concretizam por várias formas. Vale citar: o caso das normas legais criadas para reverter o processo de vinculação [1]; o aproveitamento dos limites legais e da falta de regulamentação [2] e uso de artifícios contábeis para alcançar os gastos mínimos estabelecidos pela EC/29 [3].

Nesse sentido é inegável que, desde 1988, as tentativas de garantir financiamento minimamente adequado à saúde são percebidas, de modo geral, como obstáculos, sendo alvo de reiterada resistência. O resultado é uma estrutura de financiamento completamente distorcida visto que, evidentemente, incapaz de servir de base para consolidar o Sistema Universal previsto na Constituição.

Como evidência desta distorção, basta um olhar rápido para a distribuição proporcional dos gastos em saúde no Brasil, tendo como parâmetro os domínios público e privado. Aqui, ao contrário dos países que fizeram escolha por um Sistema Universal, há mais gasto privado do que público [4], situação que não é presenciada nem mesmo nos EUA, provavelmente o maior exemplo de aposta oferta da saúde via mercado.

Diante desta conjuntura, resta claro que, no Brasil, dois movimentos devem orientar a luta pela garantia de um financiamento compatível com a construção de um Sistema Universal de Saúde. Por um lado é imprescindível ampliar a previsão de gastos públicos com a saúde [5]. No entanto, essa luta será em grande medida desperdiçada, caso não seja dada especial atenção às mais diversas manobras que tem por finalidade esvaziar as previsões legais que buscam estabelecer estruturas adequadas de financiamento.

Nesse sentido, a fiscalização realizada pelos órgãos de controle como Conselhos de Saúde, Ministério Público e Tribunais de Contas mostra-se indispensável pelo potencial de se consubstanciar em importante barreira frente às tentativas de esvaziamento das normas que intencionam estabelecer estruturas mais adequadas ao financiamento do SUS.

Ocorre que, em Minas Gerais, o Ministério Público deixou claro que participa dessa resistência apenas até certo ponto. Foi um recado de completo desestímulo para àqueles que lutam pelo aprimoramento do Sistema de Saúde estabelecido na Constituição e que acreditam nas Instituições de Justiça do país.

O recado, dado pela Procuradoria Geral de Justiça ao pedir o arquivamento de ação judicial que questionava a regular aplicação dos recursos da saúde, expõe a necessidade de que a população se aproxime mais das instâncias de controle.

Em síntese, a ação buscou compreender o destino de aproximadamente 3 bilhões de reais que, de acordo com as prestações de contas apresentadas pelo Estado de Minas Gerais, teriam sido transferidos para a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) e deveriam ser revestidos em ações de saneamento básico.

Conforme se depreende, inicialmente, da narrativa elaborada pela promotoria de saúde na ação de número 2448321-09.2010.8.13.0024, vários indícios apontariam para a ausência da efetiva transferência dos recursos citados. Esse foi, a princípio, o cerne da investigação, que, portanto, não teve a intenção de “questionar se saneamento básico [poderia] ou não ser considerado como ação ou serviço de saúde”. Segundo aquela promotoria a intenção seria verificar se “os recursos do Estado para financiar o saneamento básico foram efetivamente transferidos para a COPASA e se houve a destinação prevista”.

Ocorre que, durante as investigações, tanto o Estado de Minas Gerais quanto a própria COPASA foram obrigados a assumir que o descrito no orçamento, não se realizou efetivamente. No entanto, os envolvidos supracitados, alegaram que não haveria prejuízo para a saúde, uma vez que a COPASA teria investido recursos próprios no setor.

Nessa perspectiva, a controvérsia passou a envolver não mais a realização da transferência, mas sim a possibilidade de se contabilizar, como gastos em saúde, os recursos próprios da COPASA. Esse foi o entendimento do Desembargador Bitencourt Marcondes quando decidiu pelo recebimento da ação judicial citada Segundo ele:

 

Os fatos apurados estão a demonstrar que nos anos de 2003 a 2008 os agravantes, nas respectivas prestações de contas encaminhadas ao Poder Legislativo, fizeram constar transferências de recursos públicos para a COPASA para investimentos em saneamento básico, quando na verdade se tratava de investimentos próprios de recursos provenientes de tarifas. Em outros termos, o que se sugeria como transferência de recursos públicos para aplicação em saneamento básico – pois constavam da tabela de ações e serviços de saúde, o que levava à presunção legal de transferência de recursos públicos, segundo consta na inicial -, para cumprimento da obrigação imposta pela Emenda Constitucional nº 29/2000, não passava de recursos para aumentar o capital social, não passando de artifício (fraude contábil, segundo o autor da ação) utilizado pela Contadora-Geral do Estado, com aval do Governador do Estado. (Agravo de Instrumento Nº 1.0024.10.244832-1/001, julgamento concluído em: 04 de abril de 2013)

 

E, a partir de tal conclusão, destacou:

 

A questão, portanto, é saber se à falta de norma infraconstitucional a regulamentar referida Emenda Constitucional autorizaria o administrador certa margem de discricionariedade para considerar investimentos decorrentes de recursos próprios de companhia estatal, prestadora de serviço público, para atingir o percentual mínimo determinado. (Agravo de Instrumento Nº 1.0024.10.244832-1/001, julgamento concluído em: 04 de abril de 2013)

 

Evidencia-se, portanto, que o Estado contabilizou, irregularmente, investimentos realizados pela COPASA como forma de alcançar o valor mínimo a ser investido em saúde. O que, salvo melhor juízo, não respeita a CF88, visto que os artigos 198 § 2º, II (texto permanente) e 77, II (ADCT) deixam claro que os valores a serem aplicados em saúde devem proceder de impostos.

Essa situação, no entanto, não foi suficiente para convencer o Procurador Geral de Justiça de Minas Gerais a optar pelo prosseguimento da ação citada, quando, após embargos de declaração, o Judiciário reviu a decisão anterior e considerou que deveria intimá-lo para que o processo pudesse seguir de forma regular [6].

Diante do quando apresentado fica a impressão de que o Ministério Público, em Minas Gerais, até então visto como um forte ponto de apoio no processo de concretização das disposições constitucionais relacionadas à saúde apresenta sinais de atonia quando diante da tarefa de fiscalizar a regularidade da execução orçamentária relacionada à saúde. O fato da Procuradoria Geral do MP/MG optar por não seguir com a ação, mesmo diante de todo contexto relatado, acaba apontando para uma posição institucional extremamente tolerante diante de governos que, aprofundando o subfinanciamento, atuam no sentido de inviabilizar o projeto de saúde posto na CF 88.

Resta saber se os membros do Ministério Público que, cotidianamente, combatem as tentativas de inviabilizar o projeto Constitucional permanecerão inertes diante da mensagem deixada com esse ato.

 

[1] Destaca-se o caso da DRU (Desvinculação das receitas da União).

[2] Aqui, o caso mais notório relaciona-se ao aproveitamento – principalmente por parte dos Estados – da falta de regulamentação, completamente precisa, quanto ao que poderia ser considerado gasto em saúde. Quanto a esse aspecto, vale destacar que desde a EC 29 de 2000 ficou estabelecida a necessidade de Lei Complementar para resolver essa questão. No entanto, apenas em 2012 com Lei Completar 141 esse ponto foi definido (ver arts. 2 e 3 da lei). Apesar dessa evidente ausência é importante apontar que a ausência de regulamentação legal durante esse período não foi acompanhada da falta de indicações quanto as ações que deveriam ser consideradas como “ações de saúde”. Nesse sentido, além de inúmeros estudos, vale destacar os apontamentos dos Tribunais de Contas dos Estados e, sobretudo, da Resolução 322/2003 do CNS que serviu de base para o disposto na Lei Complementar 141/2012.

[3] Aqui, toma-se como exemplo a manobra contábil utilizada pelo governo de Minas Gerais entre 2003 e 2008 e que será abordada com mais profundidade no decorrer do texto.

[4] De acordo com a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABRES) o Brasil provavelmente é “único país com sistema universal de saúde onde o gasto privado é maior que o público”. Enquanto nos países desenvolvidos “a maior parte do financiamento setorial provém de fontes públicas, que respondem, em média, por 70% do gasto total (público e privado)” no Brasil o “gasto público, foi de aproximadamente 3,8% do PIB, ou seja, menos de 44% do total.”

[5] Nesse sentido vale destacar que em “março de 2012, mediante a articulação de diversas entidades da sociedade civil foi lançado o Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública. Esse movimento levou ao Congresso Nacional, com o apoio de mais de dois milhões de assinaturas, proposta de Projeto de Lei de Iniciativa Popular com o objetivo de alterar o valor mínimo a ser aplicado pela União para o equivalente a 10% de sua receita corrente bruta. Um aporte mínimo de 10% da receita corrente bruta da União representaria um acréscimo equivalente a cerca de 1% do PIB. Contudo, mesmo se aprovada essa proposta, considerada a mais audaciosa, o gasto público não chegaria a 5% do PIB.” (ABRES, 2014)

[6] Aqui, esteve em questão a legitimidade ativa para a ação. Após embargos de declaração opostos pelo réu Aécio da Cunha Neves, o Judiciário reviu decisão anterior e considerou que a Promotoria da Saúde investigou, irregularmente, o Governador no exercício do mandato, exigindo-se, portanto, a regularização do feito por meio da convalidação dos atos pelo PGJ. Vale destacar que a promotoria nega que o Governador tenha sido investigado.