MP 557: “Um avião bombardeiro não tripulado sobrevoando o Congresso”

Por Graciela Selaimen e Magaly Pazello, em poliTICs . Fonte: Site Viomundo.

Em novembro de 2011, o Instituto NUPEF (Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação) , o Programa de Apoio a Redes de Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações (PARM-APC) e o Observatório de Sexualidade e Política (SPW) apresentaram conjuntamente um relatório para o 2º. Ciclo da Revisão Periódica UNIVERSAL do Comitê de Direitos Humanos da ONU.

O Brasil tem agendada sua revisão para a 13ª. Sessão da Comitê a ser realizada entre 21 de maio e 4 de junho de 2012. Direitos civis e liberdades individuais, liberdade de expressão, direito e acesso à informação, proteção de dados e respeito à privacidade e à intimidade estão entre as preocupações relacionadas à Internet e aos direitos humanos no Brasil elencadas no relatório [1].

No texto recomenda-se que as leis brasileiras de acesso à informação e proteção de dados devem manter-se atualizadas em relação aos avanços tecnológicos, porém dentro do marco normativo dos direitos humanos. Ao elaborarmos o relatório havíamos sentido o cheiro do incêndio, mas não tínhamos avistado a fumaça… o que aconteceu no apagar das luzes de 2011, quando a presidenta Dilma Roussef, através de uma Medida Provisória [2], instituiu o “Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento para Prevenção da Mortalidade Materna”.

A Medida Provisória 557 trata, na realidade, da instituição de um cadastro compulsório de todas as gestantes que utilizem o sistema de saúde público ou privado – ou seja, de um mecanismo de vigilância das gestantes como bem informa o próprio texto. A medida inclui um benefício de até R$ 50,00 para a gestante como forma de garantir o traslado para as unidades de saúde – e a MP dispõe que as mulheres que optarem por receber o benefício financeiro terão seus nomes listados para acesso público no Portal da Transparência [3] do governo federal.

Ignorando completamente, de um lado, as ações e políticas já em curso na área da saúde das mulheres e, de outro, o diálogo com a sociedade brasileira, a Presidência, em nome da urgência no acompanhamento de gestantes com gravidezes de risco, resolveu passar por cima de critérios básicos e necessários para o aprimoramento do sistema de saúde – incluindo-se a proteção da privacidade e dos dados pessoais das gestantes. A Medida Provisória remete aos tempos da ditadura militar. Lançar mão desse instrumento em plena vigência do Estado Democrático de Direito requer que certas condições existam – entre elas a de uma situação de urgência. Mas, neste caso, de que urgência se trata, exatamente?

Não há dúvida de que a urgência na prevenção e atenção à mortalidade materna é real, e vale lembrar que este é o único dos Objetivos do Milênio [4] que o Brasil não conseguiu cumprir. Certamente é um indicador negativo que o governo tem que enfrentar.

Devemos lembrar também que em 2011 o Brasil foi condenado pelo Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW) a indenizar financeiramente a família de Alyne da Silva Pimentel[5] e a implementar uma série de recomendações para reduzir a mortalidade materna.

Alyne, aos 28 anos, faleceu vítima do descaso do sistema de saúde. A jovem afro-brasileira, com 27 semanas de gestação e com a confirmação de óbito fetal, foi encaminhada para um hospital público. Mesmo com o diagnóstico confirmado, Alyne esperou horas no corredor de um hospital sem nenhum atendimento, entrou em coma e morreu. Uma morte perfeitamente evitável. O caso, ocorrido em 2002, passou por todas as instâncias do judiciário brasileiro e, sem solução, foi levado ao CEDAW. Resultado: a indenização até hoje não foi paga – e a MP 557 não atende às recomendações do comitê.

Jussara Rötzsch, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde, especialista em informática na saúde e diretora da Fundação Open HR (Fundação Registro Eletrônico de Saúde Livre), lembra que a resolução do CEDAW estabelece que

“os Estados têm uma obrigação de garantir que todas as mulheres em seus países – independentemente de sua renda ou origem racial – tenham acesso a serviços oportunos, não discriminatórios e adequados de saúde materna. Inclusive quando o Estado delega a prestação de serviços médicos a instituições privadas, este mantém a responsabilidade direta sobre a prestação do serviço e tem a obrigação de regular e monitorar tais instituições”.

A pesquisadora observa que a MP 557 cria a obrigação de que haja em todo estabelecimento de saúde uma comissão para fazer o registro de todas as grávidas atendidas naquele estabelecimento – e que toda esta informação tem que estar pronta para ser transferida a um Cadastro Nacional, se for requisitada. Isso deverá ocorrer mesmo naqueles estabelecimentos (públicos ou privados) onde não existe ainda um sistema informatizado, treinamento para o seu uso, capacidade de garantia da segurança dos dados armazenados, pessoal especializado para operar estes sistemas etc.

Jussara questiona: como o Estado brasileiro pretende “regular e monitorar tais instituições”, e assumir “a responsabilidade direta sobre a prestação do serviço”?

Pacto contra a mortalidade materna x MP

Diante do fato de que a mortalidade materna por causas evitáveis é um grande problema no Brasil, o presidente Lula lançou, ainda em seu primeiro mandato, o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal. Como informa o Portal Saúde [6]:

Lançado pela Presidência da República em 08 de março de 2004, o Pacto foi aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e no Conselho Nacional de Saúde (CNS), e já conta com a adesão das 27 unidades federadas, pactuadas em seminários realizados em articulação com as secretarias estaduais e municipais de saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), entre outras instituições governamentais e da sociedade civil [7].

Com a edição da MP 557, a Presidência, junto com o Ministério da Saúde, deixam claro que ignorou os termos do Pacto, assim como as demais normas e protocolos já em curso no SUS. A medida aponta para a precarização das políticas em curso justamente pela sobreposição entre elas e a MP, que tem força de lei. Em outras palavras, a MP 557 é desnecessária. Portanto, a quais interesses essa Medida Provisória vem realmente atender?

Assim que a MP foi editada, o movimento feminista reagiu apontando as diversas falhas dessa ação – começando pelo próprio uso do instrumento ‘Medida Provisória’. A imagem da MP 557 como um avião bombardeiro foi usada por Sonia Corrêa, em entrevista para o blog Viomundo [8], para descrever o que significa o instrumento ‘Medida Provisória’ do ponto de vista legislativo. Segundo Sonia, a MP

“…cria urgência, empata o trabalho do Congresso, suscita uma dinâmica legislativa na qual é muito difícil a sociedade intervir.Ou seja, é um instrumento de corte bastante autoritário. […] só posso entender a escolha da MP como o caminho mais rápido para coibir o debate, garantindo a qualquer custo a tutela e o vigilantismo da vida reprodutiva das brasileiras. […] Nada justifica uma MP como a 557, exceto a vontade de driblar o debate com a sociedade. Já imaginou se, via MP, se tentasse tornar compulsório o teste de HIV e a soropositividade tivesse de ser declarada? Ou, para não irmos tão longe, o teste de sífilis, já que AIDS, embora seja doença crônica, ainda pode ser fatal? Ia haver uma grita geral, não é? Mas como se trata das mulheres e da maternidade toda invasão de privacidade é permitida”.

Apesar de a época parecer propícia, a tentativa de despistar a sociedade brasileira editando a MP durante as festas de fim de ano saiu pela culatra. Além das vozes feministas, outras organizações e redes publicaram notas de repúdio à MP, às quais se juntaram a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) [9], entre outras.As organizações foram unânimes em apontar as graves falhas da MP 557 e demandar sua imediata revogação.

Nessa tentativa o governo federal se atrapalhou. O ministro da Saúde Alexandre Padilha e seus assessores insistiram em afirmar que a MP foi apresentada em uma reunião da Rede Cegonha com várias organizações da sociedade civil e outros órgãos governamentais. O ministro Padilha, particularmente, citou a então ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirmando que ela havia participado da feitura da MP.

A própria Iriny Lopes prontamente desmentiu Padilha no começo de janeiro[10]. A situação ficou ainda mais complicada quando se levantou a inconstitucionalidade do EMPREGO do termo nascituro no texto da MP – o que, somado às críticas contundentes das feministas, fizeram com que Dilma revisse o texto da MP para suprimir esse termo. Entretanto, continua intacto todo o teor da MP, apenas retirou-se do texto original o Art. 19-J – que, ao equiparar os direitos da gestante aos “direitos do nascituro” viola a Constituição Federal de 1988, que em nenhum momento adota a proteção da vida desde a concepção, e, portanto, não confere direitos plenos ao nascituro. A MP 557 está neste momento em tramitação no Congresso Nacional na sua íntegra.

Cadastro, vigilantismo – o que está em jogo, de fato?

O nome “Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna” por si só já revela o caráter de vigilantismo desta medida. Mesmo que “vigilância” seja um conceito de uso corrente na epidemiologia, seu EMPREGO se refere a situações, e não a pessoas, como bem lembra Jussara Rötzsch.

Segundo ela, medidas de notificação compulsória estão previstas pelo Conselho Federal de Medicina. Todavia, as normas para notificações de abuso infantil, doenças infecto-contagiosas ou acidente de trabalho não foram instituídas por Medidas Provisórias: “O processo é outro, e nestes casos, assim como em todas as portarias do Ministério da Saúde e nas resoluções do Conselho Federal de Medicina, há uma preocupação expressa e critérios claros com relação à segurança dos dados pessoais e à privacidade dos pacientes. Além do mais, gravidez não é doença infecto-contagiosa, e não deveria ser tratada como um acidente ou crime de abuso”.

Pensando em termos de saúde pública o que o Estado deve fazer é o registro e monitoramento da mortalidade materna – o que não deveria implicar, em nenhuma situação, o exercício da vigilância sobre as gestantes. A ambiguidade do texto original da MP deixa transparecer bem as verdadeiras intenções por trás da medida: a tutela das mulheres, que vai além do maternalismo e se aloja na vigilância das gestantes. Esta intenção foi arrematada pelo Art. 19-J do texto original da MP 557, onde (fazendo-se uso de uma insidiosa ambiguidade), equipara-se a mulher ao nascituro como se este fosse uma pessoa: “Os serviços de saúde públicos e privados ficam obrigados a garantir às gestantes e aos nascituros o direito ao pré-natal, parto, nascimento e puerpério seguros e humanizados”.

Através de uma operação linguística nada sutil, a MP altera a premissa básica de que é a mulher o foco das ações em saúde reprodutiva e não o feto autonomamente, como o texto tentou instaurar na associação ao pré-natal, parto e puerpério.

Há vários receios verdadeiros relativos a esta Medida Provisória. Com relação ao cadastro, desde que o SUS foi implantado, a coleta de dados epidemiológicos, seu processamento e efeitos práticos têm sido objeto de constantes estudos, críticas e revisões.

Em 1997, uma resolução do Conselho Nacional de Saúde tornou a morte materna um evento de notificação compulsória no Brasil. Esta norma efetivou-se com o Pacto mencionado anteriormente, que ampliou a metodologia da coleta do dado. Ainda assim, é uma dificuldade conseguir os dados necessários para a investigação das ocorrências de morte materna no país.

Portanto, não falta no país um cadastro UNIVERSAL para a vigilância da morte materna, tampouco para pré-natal – conforme o ministro da saúde sublinhou em debate no Twitter [11]. Apesar da existente coleta de dados e de seu armazenamento, o processamento da informação sobre mortalidade materna não é eficiente. No Brasil, já funcionam há vários anos os comitês de morte materna para investigar as circunstâncias dos eventos, e a resposta ainda é insuficiente e ineficaz por falta de aperfeiçoamento do sistema.

A MP 557 não prevê o melhoramento da metodologia de cadastramento de gestantes e notificação de eventos – ao contrário, apenas elenca uma série de itens deixando a sua operacionalização para um outro momento, sem sequer mencionar o direito à confidencialidade e à privacidade dos dados da gestante. Para piorar, pela forma como é apresentado, esse novo sistema de cadastro pode incluir dados do prontuário médico além de dados oferecidos pela paciente – violando, assim, o segredo médico.

Portanto, o cadastro, em si mesmo, conforme está instituído pela MP, pouco contribui para o avanço da prevenção da morte materna. Entretanto, adiciona insegurança. Embora as responsabilidades sobre o cadastro estejam delimitadas pela MP 557, ela passa ao largo dos problemas na coleta, armazenamento e processamento desses dados por terceiros, um problema já existente no sistema de saúde público e privado conforme debatido durante o II Seminário sobre Privacidade e Proteção de Dados [12].

O advogado Fernando Aith, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, afirma que é grave a fragilidade dos mecanismos de coleta, processamento e armazenamento de dados sensíveis nos hospitais e outros estabelecimentos de saúde.

Segundo Aith, “os dados do paciente dificilmente são manipulados pelos médicos – eles passam para as mãos de estagiários, assistentes ou outros profissionais das áreas administrativas das instituições – e estas pessoas, em sua grande maioria, não estão preparadas para esta tarefa e para a responsabilidade que ela implica”.

Fernando ressalta que não há formação específica para estes profissionais com relação aos cuidados necessários para o tratamento de dados pessoais, muito menos sensibilização com respeito a considerações éticas e legais – isso passa longe da realidade dos hospitais. Para ele, a criação de mais um cadastro pelo Ministério da Saúde, além de potencializar a possibilidade de violação da privacidade das pacientes, representa desperdício de DINHEIRO público: “Não há justificativa para esta Medida Provisória com base na Saúde Pública – ela não melhora em nada o sistema nacional de saúde, pelo contrário: fragiliza-o. A criação de mais um cadastro fragmenta e torna ainda mais vulnerável um sistema já pulverizado, que está nas mãos de um conjunto de burocratas e sobre o qual não há monitoramento da sociedade – o que dificulta muito a fiscalização e responsabilização no que diz respeito à proteção e segurança dos dados dos pacientes”.

Jussara Rötzsch ressalta que a MP não explica como será a criação desse cadastro – simplesmente determina que os estabelecimentos de saúde devem ter um registro eletrônico desses dados em algum lugar, sem nenhuma menção a medidas de segurança ou de proteção à privacidade dos dados das gestantes: “isso é particularmente preocupante num país onde não não há uma lei especialmente voltada para a área da saúde, que trate da questão dos dados sensíveis. O Brasil tem, no Código no Penal, previsões legais sobre a guarda e a divulgação de dados sensíveis, mas para o setor bancário. Para a área de saúde, isso não existe no país. As únicas medidas existentes hoje neste campo são as resoluções do Conselho Federal de Medicina, mas estas tratam apenas de critérios para os médicos. Jussara lembra que para o Conselho Federal de Medicina o cidadão é hipossuficiente – isto é, para o Conselho Federal de Medicina e para o Ministério Público o paciente não tem condições de decidir se pode abrir mão da informação pessoal que está compartilhando com o médico. Mas a MP determina que a gestante que buscar atendimento e receber os R$ 50,00 reais o faça, mesmo sem entender o que isso envolve”.

A operacionalização do cadastro e as possibilidades de acesso às informações nele contidas também adicionam insegurança pelo caráter coercitivo da compulsoriedade do registro de todas as gravidezes no país mediante o atendimento pré-natal. Este caráter coercitivo é mais preocupante neste momento político específico em relação aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil – justamente quando o ambiente para o debate sobre aborto no país torna-se ainda mais difícil frente aos ataques à liberdade de consciência promovidos por grupos religiosos conservadores e ultraconservadores.

Quem está habituado às batalhas travadas no campo da saúde e dos direitos reprodutivos sabe que não é exagero afirmar que através do texto da MP pode-se ouvir os ecos do Projeto de Lei 7022/2010 do deputado cassado Bispo Robson Rodovalho (PP/DF), que tornaria o registro obrigatório da gravidez realizado em cartório e sem o qual não seria possível a obtenção do pré-natal no SUS. Esse projeto tinha como objetivo gerar provas para os casos de aborto, especialmente nos casos de aborto inseguro.

Este é um dos pontos mais sensíveis da MP, que prevê não apenas o cadastro universal de todas as gestantes, mas também a publicação em lista de acesso público dos nomes daquelas que receberem a ajuda de custo de até R$50,00. Ligar o nome da beneficiária à sua condição de gestante faz com que todas as luzes vermelhas se acendam num ambiente de perseguição às mulheres que abortam como o que estamos vivendo hoje no país.

O Brasil possui uma das legislações mais restritivas do mundo com relação à interrupção voluntária da gravidez, não sendo nem permitido para os casos de graves anomalias fetais incompatíveis com a vida extrauterina ou nos casos de danos à saúde da gestante. No Congresso Nacional, frequentemente são apresentados projetos de lei que visam retrocessos na legislação para proibir o aborto em toda e qualquer circunstância, mesmo para os dois únicos permissivos legais constantes na lei, ou seja, os casos de risco de morte da gestante e estupro.

Para completar, diferentemente do Pacto (que foi construído a partir da participação da sociedade brasileira e de diversos órgãos do governo, inclusive da área de direitos humanos), o texto da MP 557 tem vários pontos ambíguos e passíveis de interpretações que conduzem, no limite, a uma situação de puro vigilantismo. O que não é estranho, pois o potencial de vigilantismo está latente na lógica dos sistemas de saúde. De fato, as formas autoritárias de vigilância estão latentes nas democracias e emergem sempre que o imaginário do “bem comum” é decalcado em medidas coercitivas. Um bom exemplo disso é a Lei Azeredo [13].

Assim, para justificar medidas coercitivas através da saúde pública utiliza-se a ideia do que tais medidas seriam boas para todos. Como sublinhou Sonia Corrêa, a MP 557 mobiliza dois imaginários poderosos: o do “bem comum” e o do maternalismo (ou seja, o destino biológico das mulheres como mães, e por conseguinte a sua tutela no que diz respeito ao cuidado de si – neste caso o Estado passa a ser a autoridade em primeiro lugar a decidir sobre o que é melhor para as mulheres e não elas mesmas). O mesmo tipo de argumentação ocorreu durante o debate sobre a pedofilia no Brasil, quando medidas coercitivas, como a proposta de um cadastro obrigatório de todas as pessoas que navegam na Internet, foram apontadas como a grande solução para o crime de abuso sexual de crianças. E por aí vamos…

A MP 557 surge num momento muito sensível da agenda política do governo Dilma no que diz respeito aos direitos humanos – seja no plano nacional, regional ou global. O governo brasileiro tem sistematicamente feito ouvidos moucos às denúncias de não observação dos direitos humanos em ações governamentais de grande porte. Para piorar a situação, o governo de Dilma Roussef, ao se recusar a pagar a parcela do Brasil na Organização dos Estados Americanos, alimenta uma crise que se iniciou com Belo Monte [14] e que, de quebra, mina o sistema interamericano de direitos humanos.

Estes, entre outros fatos, tornam a MP 557 ainda mais problemática – à luz da história das lutas pela humanização do atendimento no SUS, à luz dos direitos reprodutivos e à luz da incipiente construção de possíveis garantias ao direito à privacidade e à proteção de dados pessoais em sistemas informatizados. O problema da mortalidade materna, repetimos, é de outra natureza: deve-se (no mínimo) à incompetência de gestão.

Contudo, a MP 557 instaura uma perigosa ação de vigilantismo sob o manto da saúde pública, impondo uma tutela das mulheres que, sabemos, será mais vigorosa sobre as mulheres pobres – de quebra abrindo uma brecha para a perseguição das mulheres que necessitarem de atenção em razão de aborto inseguro. Num país onde existe um importante vácuo regulatório na área de proteção de dados pessoais, as possibilidades de vigilância, tutela e controle que a MP 557 representa abrem portas para cenários inimagináveis e assustadores, que, esperamos, jamais precisemos denunciar.