Já não somos os mesmos?
Por Raymundo Costa | De Brasília
Valor Econômico – 25/05/2012
Há 20 anos, uma entrevista do empresário Pedro Collor desencadeou um processo de final traumático: o impeachment de seu irmão Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente da República eleito pelo voto popular no pós-64. Passadas duas décadas, Collor passou da condição de réu a de algoz na CPI do Cachoeira, onde a todo custo tenta resgatar uma biografia perdida nas trapaças de seu curto governo. Curiosamente, em sociedade com o PT, que em 1992, ainda exibindo a aura de “partido ético”, ajudou a empurrar o presidente para um longo período de ostracismo político, durante o qual foi rejeitado inclusive por seus antigos eleitores alagoanos – findo o prazo de oito anos de suspensão de seus direitos políticos, ele tentou retornar ao governo estadual em 2002, mas perdeu a eleição para o socialista Ronaldo Lessa (PSB).
Collor caiu em pouco mais de quatro meses após a entrevista, algo inimaginável na virada dos anos 1990, no fim de uma campanha eleitoral inovadora, moderna para os padrões dos marqueteiros da época, que o levou ao Palácio do Planalto com os votos de 35 milhões de brasileiros, no segundo turno da eleição de 1989. Político sem expressão nacional, quarto de cinco filhos da oligarquia de Arnon de Mello, Collor, a exemplo de Jânio Quadros na última eleição direta antes do golpe militar de 1964, empolgou o país com um discurso moralista, de combate à corrupção. A diferença é que Jânio tinha como símbolo a vassoura, com a qual, dizia, varreria “a bandalheira”. Collor encarnou o “caçador de marajás” – como batizou servidores públicos que recebiam altos salários, especialmente no Judiciário alagoano, numa afronta à população de um dos menores e mais pobres Estados do país.
O que o país não tardou a descobrir, e Pedro Collor confirmaria em entrevistas e depoimento à CPI, é que Collor era um farsante. O discurso da moralidade com o qual empolgara o Brasil era tão falso como uma nota de 3 reais. Enquanto o presidente hipinotizava o público caçando marajás, seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, o PC, assassinado em circunstâncias misteriosas em 1996, extorquia empresas públicas e privadas em nome do presidente. Estima-se que PC Farias tenha arrecadado alguma coisa em torno de US$ 1 bilhão. Os números variam conforme a fonte. Na entrevista que concedeu à revista “Veja”, edição de 27 de maio de 1992, Pedro Collor disse que o presidente e o tesoureiro eram, na realidade, sócios na roubalheira, na proporção de 70% para 30%, respectivamente, para cada um.
A CPI para apurar as denúncias de Pedro Collor e as atividades de PC Farias no governo teve momentos épicos e, no fim, chegou a dar a impressão de que o país finalmente achara o caminho para erradicar a erva daninha da política nacional: a corrupção. As palavras do deputado Benito Gama (PFL-BA), na abertura da CPI, traduziam com exatidão o sentimento de esperança que perpassava a sociedade: “O Brasil não será o mesmo após a CPI. Nem nós seremos os mesmos”. Fazia, assim, remissão adaptada à circunstância de um verso do poeta chileno Pablo Neruda: “Nosotros ya no somos los mismos”.
Transcorridos apenas 67 dias de CPI, seu relator, o senador Amir Lando, já considerava possível afirmar “a procedência e o acerto” da previsão de Benito Gama. O parecer de Lando, lavrado numa linguagem mais empolada, também tinha conexão com as ruas nas quais jovens cara-pintadas pediam o impeachment de Collor, em nome da moralidade pública. “A CPI foi um momento de purgação dos desvios da conduta administrativa, uma tentativa de pôr a limpo parcela do lodaçal de corrupção que molesta a nação, um apelo de sobrevivência da virtude na vida pública”, escreveu Lando no relatório final da CPI. “É preciso renovar a face do país.”
Collor com Paulo César Farias, seu tesoureiro de campanha, assassinado em 1996: 35 milhões de votos e nebulosa contabilidade de milhões de dólares
Passadas essas duas décadas, é lícito perguntar se não somos os mesmos. A luta contra a corrupção já não move as ruas, o Congresso perdeu a inibição para absolver sem constrangimento seus pares acusados do que hoje se chama “malfeitos” e Collor – sim, Fernando Collor de Mello – é novamente protagonista de uma CPI do Congresso. Agora não mais na condição de alvo, mas de quem a todo custo quer resgatar uma biografia perdida. Na CPI do Cachoeira, ele repete a cantilena que já entoou na internet e no plenário do Senado, cujos versos dão conta de que, na verdade, ele foi vítima de uma conspiração, golpe congressual levado a cabo, com a ajuda da imprensa, pelos setores mais atrasados da elite de um país que ele tentava modernizar com sua política de abertura econômica.
O próprio PT, no poder há quase dez anos, deu sua contribuição para o país se manter entre os primeiros do mundo nos rankings da corrupção. Provavelmente ainda neste ano, alguns dos principais líderes do partido na época da CPI do PC serão julgados no Supremo Tribunal Federal (STF) pela criação de um esquema de compra de votos no Congresso – o mensalão, que apagou a aura de “partido ético” do PT e levou a pique lideres partidários como José Dirceu, Luiz Gushiken e José Genoino, e estrelas da nomenclatura como Delúbio Soares e Sílvio Pereira. Não é à toa que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou um processo de renovação dos quadros do PT paulista – os antigos foram destroçados pelo mensalão ou outros escândalos posteriores, como o que abateu Antônio Palocci do Ministério da Fazenda (a quebra do sigilo bancário de um caseiro que testemunhara suas visitas a uma casa de encontros num bairro nobre de Brasília). Todos eram do PT de São Paulo. Alguns aspiravam à sucessão de Lula na Presidência, casos de Dirceu e Palocci.
A CPI do mensalão não foi a única. No período pós-Collor, só para citar alguns casos mais notórios, houve um escândalo no Ministério da Saúde envolvendo nada menos que 84 parlamentares, os chamados sanguessugas. Houve também as operações de repercussão da Polícia Federal. A PF prendeu gente como Daniel Dantas, dono do Opportunity, os senadores Jader Barbalho (PMDB-PA), ex-presidente do Senado (casa à qual voltou agora, mesmo com os apuros que viveu por conta da lei da Ficha Limpa), e o ex-senador Luiz Estevão (PMDB-BR). O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, perdeu espaço quando foi revelado que uma empreiteira pagava suas contas pessoais. Até o aparentemente indestrutível Paulo Maluf (PP-SP) dormiu algumas noites numa cela especial da PF.
Cachoeira, que agora tem a própria CPI, nesse período frequentou as CPIs dos Correios, uma das que apuraram o esquema do mensalão e a dos Bingos, na qual falou bastante e da qual saiu indiciado. No depoimento que prestou à CPI dos Bingos, Cachoeira confirmou que um antigo assessor de José Dirceu na Casa Civil da Presidência, Valdomiro Diniz, tentara achacá-lo com pedido de propina. O indiciamento deu em nada, uma vez que desde 2005 Cachoeira esteve livre para articular os tentáculos de sua organização criminosa nas entranhas do Estado brasileiro.
Aparentemente, o país e seus congressistas continuaram os mesmos, ao contrário do que previa Benito Gama, no relatório da CPI do PC, em 1992. Aparentemente porque, se não mudou a “ética do poder”, como se prenunciava em 1992, algumas coisas mudaram, e mudaram para melhor. Na época de Collor, por exemplo, era proibido o financiamento privado de campanhas eleitorais. Uma “hipocrisia”, como classificou PC Farias em um de seus depoimentos mais dramáticos à CPI, pois o dinheiro rolava solto nas campanhas eleitorais, principalmente naquelas com a condição de favoritas. Como a de Fernando Collor, que começou desacreditada. Os cálculos mais precisos indicam que PC Farias arrecadou cerca de US$ 52 milhões na campanha collorida.
Desde 1994, as doações para campanhas eleitorais, que estão no DNA da corrupção, são reguladas em lei eleitoral. Mudanças ainda insuficientes, como demonstra o exemplo de Delúbio Soares, o tesoureiro da campanha de Lula na eleição de 2002, que atribuiu a dinheirama que rolou no suposto mensalão a “caixa 2” de campanha. Outra mudança sobre a qual há consenso, mas o Congresso não faz, é a simplificação dos códigos de processos, verdadeiros estímulos à impunidade, com as brechas que permitem aos réus protelar por anos o julgamento. Sobretudo, aqueles que dispõem de recursos para pagar um bom advogado, caso de… Cachoeira.
José Nascimento/Folhapress / José Nascimento/FolhapressLiteralmente, o país saiu às ruas, jovens à frente, para exigir o impeachment e, depois, para comemorar a queda de Collor
Com Fernando Collor, a corrupção política foi exposta à visitação pública de maneira crua, o que era impossível durante o regime militar, mas já se mostrava visível no de governo José Sarney (1985-1989), também objeto de uma CPI da Corrupção, mais tarde arquivada a golpes de caneta pela Mesa da Câmara dos Deputados. Para assegurar cinco anos de mandato, que a Assembleia Nacional Constituinte planejava cortar para quatro, Sarney foi generoso na oferta de concessões de rádios, emissoras de televisão e emprego para os afilhados.
Muito já foi escrito sobre a queda de Fernando Collor, sob todos os aspectos. O empresário Pedro Collor, antes de morrer, deixou sua versão escrita no livro “Passando a Limpo – A Trajetória de um Farsante”, coordenado e editado pela jornalista Dora Kramer. O próprio Fernando Collor divulgou o que seria o primeiro capítulo de “Crônica de um Golpe – A Versão de Quem Viveu o Fato”. Perguntado pelo Valor sobre os capítulos subsequentes, Collor não se manifestou. Por e-mail, informou que a seu tempo deverá conceder uma entrevista ao jornal. Sem falar de outros livros importantes sobre o período, como “Notícias do Planalto”, de Mário Sérgio Conti, resta pouco ou quase nada a contar de novidade sobre os anos curtos, mas feéricos do governo de Fernando Collor. É preciso, aprofundar as especulações sobre como o “fenômeno Collor” se tornou possível.
Esse é um trabalho para os historiadores, sociólogos e cientistas políticos. Para os jornalistas, sobra o aluvião. Talvez a campanha e a eleição de Collor ajudem a entender o mito fundador do nosso presidencialismo de coalizão. Mas sempre é bom lembrar as circunstâncias que levaram um político muito jovem, em seus 40 anos (foi o mais novo presidente a tomar posse no país), governador de um Estado pequeno como Alagoas e sem pertencer a um grande partido transformar num delírio collorido a campanha de 1989, à qual concorreram pesos pesados da política nacional, como Ulysses Guimarães, pelo PMDB, Aureliano Chaves, pelo PFL, e Leonel Brizola, pelo PDT.
De início, Collor foi ridicularizado na própria família. Leopoldo, irmão que hoje vive em São Paulo amargurado, com dificuldades financeiras pelas quais culpa o ex-presidente, chegou a dizer que ele envergonhava a família com aquela atitude. Depois da eleição, Leopoldo posou como o “grande eleitor” do irmão, por ter assegurado, dizia, sua eleição em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. Mas em 1989 os fatos jogavam, quase todos, a favor de Fernando Collor. A começar pela superinflação do governo José Sarney, a corrupção que corria a olhos vistos e a consequente divisão da Aliança Democrática, a associação do PMDB com os dissidentes do PDS – que formaram o PFL – que assegurou a vitória de Tancredo Neves na eleição indireta, em 1985, pelo Colégio Eleitoral já não mais dominado por um regime militar exaurido.
Na prática, como se vê, o presidencialismo de coalizão, na redemocratização, vem desde a aliança que retirou de cena a “Revolução de Março de 1964” – até há bem pouco tempo, o 31 de Março era uma data celebrada no calendário das Forças Armadas, só retirado da folhinha há pouco tempo, por determinação do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim.
Detalhe que em geral passa despercebido é o fato que a eleição de 1989 foi uma eleição solteira, apenas para presidente da República, o que favorece o surgimento de fenômenos ou aventureiros que prescindem dos partidos políticos. Collor tirou a sorte grande quando passou para o segundo turno da eleição, com seus 22,6 milhões de votos (28,52% do total), contra Luiz Inácio Lula da Silva, que teve 11,6 milhões de votos (16,08%). Brizola, que não conseguiu entrar no eleitorado paulista, ficou logo atrás de Lula, com 11,1 milhões de votos (15,45%). É impossível dizer que a história seria diferente se Brizola tivesse passado ao segundo turno. Mas é fato que aquela foi a “eleição do medo”. Medo de Lula, seja na elite ou nos “descamisados” e “pés descalços”, como Collor se referia aos mais pobres.
O ex-ministro, ex-senador e ex-diplomata Roberto Campos costumava dizer que qualquer empresa ou banco não hesitaria em dar 10% de seu faturamento para impedir a vitória de Lula. Mário Amato, ex-presidente da Fiesp, chegou a dizer que 300 mil empresários deixariam o país se Lula fosse o vitorioso. Lula iria confiscar a caderneta de poupança, tiraria os apartamentos da classe média. Eram esses os boatos que minavam sua candidatura. Já eleito presidente da República, na quarta tentativa, Lula reconheceu que fora melhor perder a eleição de 1989, pois não estava suficientemente preparado para a Presidência. Boa parte do que o empresariado temia sobre ele era verdade, na época. Não foi por outro motivo que, 13 anos depois, teve que fazer aliança com um empresário do Partido Liberal (José Alencar) e escrever a Carta ao Povo Brasileiro, quando se rendeu a princípios para os quais antes torcia o nariz.
Os cara-pintadas foram às ruas pedir a saída de Collor na onda do discurso da moralidade. Na prática, queriam derrubar o sistema e a política econômica. Itamar Franco, que sucedeu Collor, avançaria mais na agenda neoliberal que o presidente deposto, assim como Lula, 13 anos depois.
Com Sarney no “auge” da impopularidade, a Aliança Democrática se dividiu, é verdade, mas também as forças do centro para a esquerda compareceram com candidatos próprios à eleição. Ao todo, 22 candidatos concorreram a presidente da República em 1989, número recorde. Havia um acordo no PFL: Aureliano Chaves abriria mão da candidatura, em junho, mês das convenções, se não estivesse entre os três primeiros colocados na pesquisa, o que permitiria ao partido escolher outro candidato para apoiar. Aureliano era assíduo frequentador da rabeira das pesquisas, mas não abriu mão. No PMDB, outros três pré-candidatos disputaram a indicação partidária com Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas. Todos foram ultrapassados pelo “novo” que chegava – Collor e Lula. O próprio Collor passou a achar que tinha chances, pela fragilidade, fraqueza eleitoral dos outros candidatos.
O PFL apoiou Collor no segundo turno, contra o voto do senador Guilherme Palmeira (AL), hoje aposentado. Palmeira, de certa forma, é o responsável pela carreira política de Collor. Foi ele quem, em 1979, nomeou o jovem empresário prefeito de Maceió (na época, não havia eleição para prefeito das capitais). Logo se arrependeu. Nas eleições para o governo estadual de 1986, Collor disputou com o padrinho político e venceu a eleição. Numa tentativa de tirar o PFL das mãos de Collor, o então senador e outros líderes pefelistas procuraram obter o apoio da TV Globo ao candidato do PSDB, Mário Covas. Roberto Marinho, o proprietário da emissora líder em audiência no país, chegara a acenar com essa possibilidade. A conversa até foi animadora, o tucano ganhou algum espaço, mas Covas não decolou e Marinho, que fora amigo do pai do candidato, o falecido senador Arnon de Mello, logo se voltou para Collor. A hipótese que o dono da Globo não admitia, em 1989, era apoiar Lula ou seu arqui-inimigo Leonel Brizola. O PFL ficou com Collor, mas devidamente advertido por Guilherme Palmeira, irmão de Vladimir Palmeira, o incendiário líder estudantil dos anos 1960, hoje acomodado no PT.
O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, recebe o pedido de impeachment de Collor, apresentado por entidades da sociedade civil (no centro, de óculos, o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho)
Numa reunião do alto comando pefelista na casa do atual presidente do Democratas (DEM), senador José Agripino (AL), Palmeira pediu a palavra: “Eu não tenho condições de votar em você, eu acho que você não tem preparo para ser presidente da República. Convivi com você e não vou fazer esse mal para o Brasil”. Palmeira, no entanto, deixou aberta a porta para o partido: “Se o PFL achar que você é menos ruim, eu não vou atrapalhar, não vou criar obstáculos. Agora, o meu voto, meu amigo, você não vai ter nunca. Eu vou votar no Lula”.
Palmeira é personagem importante no enredo da crise, por sua participação em alguns momentos cruciais. Além do apoio do PFL, o senador, alagoano como o presidente, participou de duas dramáticas tentativas de salvamento do governo do conterrâneo.
Ao contrário do que costuma dizer Collor, seu primeiro ministério também tinha políticos de profissão, como Carlos Chiarelli (RS), chamado para a Casa Civil, e Alceni Guerra (PR), no Ministério da Saúde, um dos maiores orçamentos da República. Os dois representavam a cota do PFL no governo. O PMDB também tinha gente no ministério, como Bernardo Cabral, escolhido para a Justiça mais por desinformação de Collor do que por indicação partidária: o presidente eleito achava que Cabral, por ser o relator da Constituinte, fora o grande inspirador da Carta de 1988. Não tardou a perceber quanto estava enganado. Por outro lado, é verdadeiro que o núcleo consistente de apoio a seu governo era constituído por apenas 160 dos 503 deputados que então integravam a Câmara – o menor de todos os presidentes, desde Sarney.
Collor dispunha de outros 160 considerados de “apoio eventual”, distribuídos pelos diversos partidos, com os quais podia contar nos termos em que as negociações se dão no Congresso, na base do toma lá dá cá. Justiça seja feita, Collor, do alto de seus 35 milhões de votos e de uma arrogância que o impedia de assimilar o que se passava em volta, não tinha muita paciência para cuidar do balcão. Bem antes da entrevista de Pedro Collor ele já enfrentava dificuldades diversas com os parlamentares. Por meio de Carlos Chiarelli, ele se reaproximara de Guilherme Palmeira, que sabia ser amigo de Jorge Bornhausen, um dos principais caciques do PFL. Collor queria levar Bornhausen para o governo, mas o senador por Santa Catarina relutava, pois sabia das histórias que se contavam sobre os achaques de PC Farias. Aliás, Guilherme Palmeira também era amigo de Pedro Collor, sobre o qual tinha alguma ascendência – Pedro chegou a se filiar ao PFL alagoano, presidido pelo senador. Palmeira convenceu Bornhausen a aceitar a Secretaria de Governo de Collor, cargo essencialmente político. “Bornhausen, aceita esse negócio, foi você que inventou de apoiar o Collor, agora ajude a ver se contorna”, pediu.
Bornhausen assumiu em abril, pouco antes da bombástica entrevista que Pedro Collor havia semanas anunciava aos quatro cantos de Maceió e Brasília. Guilherme Palmeira frequentemente conversava com Pedro, ouvia as ameaças, que foram num crescendo, e resolveu avisar Fernando Collor. “Eu era contra o Collor, mas nunca pensei em derrubá-lo. Além disso, ele é de Alagoas, podia fazer algo mais pelo Estado que outros presidentes”, disse Palmeira ao Valor. O mensageiro foi PC Farias. Mas Collor não levou os avisos a sério.
Tanto a Palmeira, algum tempo depois, como a outros intermediários que o procuraram, a resposta de Collor sempre foi a mesma. “Não tem nada”, dizia sobre as denúncias que Pedro Collor armazenava contra PC Farias. Pelo menos Bornhausen não acreditou e pediu para sair. Além de observar a desenvoltura com que PC agia, o presidente também passara a ouvir mais outro ministro do PFL, Ricardo Fiúza, integrante da tropa de choque de Collor no Congresso.
Pedro Collor e sua mulher, Thereza: denúncias do irmão do presidente expuseram a cumplicidade do chefe do governo com PC Farias em amplo esquema de corrupção
À exceção de Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que o apoiou até o fim – e com isso assegurou um grande volume de verbas para a Prefeitura de Salvador -, Collor foi sendo largado por todos os principais líderes do Congresso. Com ele ficaram nomes inexpressivos e de reputação política duvidosa, como os senadores Ney Maranhão (PRN-PE) e Odacir Soares (PTB-RO), os amigos de juventude, como Luiz Estevão, que anos mais tarde teria cassado o mandato de senador, e Paulo Octávio, que era vice-governador de José Roberto Arruda, em Brasília, mas não teve condições de assumir depois que o titular renunciou, após ser divulgada uma série de filmes exibindo farta distribuição de dinheiro entre os políticos da cidade.
Quando Pedro Collor enfim falou ao jornalista Luiz da Costa Pinto, da revista “Veja”, Brasília de fato tremeu, como previa o empresário. Collor parecia catatônico, como se nada daquilo fosse com ele. Mas a família, a matriarca Leda à frente, fez um derradeiro apelo para Guilherme Palmeira tentar intermediar um entendimento entre os dois irmãos – todos os que haviam tentado antes fracassaram. Consultado, Collor condordou: “Vamos ver o que ele diz”. Guilherme Palmeira e Pedro se reuniram em São Paulo, onde toda a família estava num hotel de luxo. “Rapaz, você vai derrubar seu irmão se continuar com esse negócio, vai levar a um impasse”, disse. “Um impasse que não resolve o seu problema e ainda vai criar um problema para o Brasil.” Não que Collor fosse um grande presidente, argumentou o senador, mas a inviabilização de seu governo criaria um problema institucional, às vésperas da Rio-92, quando a antiga capital estaria repleta de chefes de Estado.
Neste ponto, Collor, Palmeira, o ex-porta-voz Cláudio Humberto e o próprio Pedro concordam: o irmão do presidente queria US$ 50 milhões para investir na “Gazeta de Alagoas”, condomínio de jornal, rádio e televisão de propriedade da família, e assegurar que continuaria no comando da empresa. Pedro tinha a convicção de que a disputa de Collor era pelo controle da “Gazeta” (leia entrevista de Thereza Collor na página 10). A diferença nas versões é que Pedro diz que preparava uma armadilha para PC Farias – ele gravaria a conversa, para depois denunciar o tesoureiro da campanha eleitoral de 1989.
“A CPI do Collor foi o evento que levou a uma série de mudanças importantes em legislação”, diz Antonio Augusto Queiróz, pesquisador do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “A relação no governo Sarney era mais fisiológica que nos tempos atuais, fazia-se a concessão individual de televisão, de rádio, dava-se emprego. A partir de Fernando Henrique Cardoso, o presidente começou a fazer de modo seletivo, atendendo segmentos, como os ruralistas, e compartilhava com a base partidária as votações no Congresso.” Além de atender no varejo.
Mudanças que, no entanto, não eliminaram a sensação de impunidade, em razão da morosidade da Justiça ou o corporativismo do Congresso. Quem puniu foram as urnas. Veja-se o caso dos 84 sanguessugas – 4 conseguiram se reeleger. No caso do mensalão, o Congresso absolveu mais de uma dezena dos acusados, mas só dois voltaram pelas urnas: João Paulo Cunha (PT-SP) e Valdemar da Costa Neto (PL-SP).
Para o sociólogo e cientista político Luiz Werneck Viana, os escândalos revelam “a imperfeição do sistema de representação, mas escondem as deficiências estruturais da República”. Há consenso de que o fim da bandalheira passa por uma reforma política que o Congresso se recusa a fazer. Por enquanto, o governante precisa de três concessões, basicamente, para fazer maiorias parlamentares: compartilhamento da gestão (leitura simplificada: distribui cargos para os partidos da base, nem sempre com critérios republicanos), negociação do conteúdo das políticas públicas (e permitir que os aliados participem dessas políticas) e liberar recursos do orçamento, seja por emendas, por convênio, por liberalidade. Nos três casos, os limites são impostos pelo presidente da República; ele é mais liberal quanto mais se comprometeu na campanha eleitoral. Dilma Rousseff pode ser mais dura, por exemplo, porque não botou a mão na massa da campanha. Ela não tratou de sua eleição com grandes financiadores. Deve-a apenas a Lula.
São fatores que contribuíram com alguma parcela para a queda de Collor. Mas não foram o principal. Tudo aponta para a montanha de dinheiro arrecadado por PC Farias. Enquanto isso, Collor procura outros fantasmas na CPI do Cachoeira, a ponto de ouvir uma lição de moral de um senador inexpressivo de seu partido, Silvio Costa, de Pernambuco, em uma intervenção na CPI: “Senador Collor, o povo de Alagoas lhe deu oportunidade histórica. O senhor faz política com muita coragem, firmeza. O senhor tem uma oportunidade histórica, porque com Alagoas o senhor já se reencontrou; e o senhor tem oportunidade de se reencontrar com o Brasil”.