Ameaça à seguridade social
Por Eduardo Fagnani [Plataforma Política Social]
Estima-se que as desonerações já concedidas em 2012 implicarão redução de R$ 7 bilhões da receita previdenciária. As consequências políticas são evidentes: em breve, as forças do mercado voltarão com o mantra apocalíptico de que, “sem uma nova reforma da Previdência, o país será ingovernável”.
Seguridade Social é um dos núcleos do Estado de bem-estar social que experimentou notável desenvolvimento nos “trinta anos de ouro” (1945-1975) de capitalismo regulado. Políticas econômicas visando ao pleno emprego e instituições do Estado de bem-estar passaram a ser aceitas como instrumentos para lidar com disfunções da economia de mercado. A experiência da social-democracia europeia é exemplar.
Nesses regimes, a questão social é vista como direito humano e parte da cidadania. O caráter universal (todos têm direitos) prevalece ante a focalização liberal. O princípio da Seguridade Social (todos têm direito ao mínimo, mesmo sem contribuir) prevalece ante o princípio do “seguro social” (somente tem direito quem paga). A redistribuição da renda também é feita pela via tributária: impostos progressivos financiam os direitos daqueles que não podem pagar. Instituiu-se a forma clássica de financiamento tripartite (empregados, empregadores e Estado, via impostos gerais).
A agenda de reforma democrática brasileira construída a partir de meados dos anos 1970 inspirou-se na experiência europeia. Esse movimento ganhou impulso no âmago da luta pela redemocratização e desaguou na Constituição de 1988. A nova Carta restabeleceu a democracia e consagrou as bases de um complexo sistema de proteção social ancorado nos princípios da universalidade, da seguridade e da cidadania social.
A Constituição inovou em diversos pontos.1 Um deles foi a tentativa de articular as políticas de Seguridade Social (saúde, previdência, assistência social e seguro-desemprego) e assegurar fontes de financiamento sustentáveis para seu desenvolvimento (artigos 194 e 195).
O “Orçamento da Seguridade Social” vincula constitucionalmente fontes contributivas de empregadores, trabalhadores (sobre a folha de salários) e do governo (impostos gerais). Nesse caso, foi criada a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Além disso, parte do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) passou a financiar o seguro-desemprego.
De forma correta, nossos constituintes se inspiraram no modelo clássico de financiamento do Estado de bem-estar social. Observe-se que nos países europeus o financiamento da Seguridade Social é composto, em média, de 38% da contribuição dos empregadores, 22% da contribuição dos empregados e 36% da contribuição do governo. Na Bélgica e na França, a contribuição patronal é superior a 46% do total de fontes. Na Dinamarca e na Irlanda, prevalece a contribuição do governo (respectivamente, 64% e 58% do total); o mesmo ocorre no Reino Unido, Suécia e Finlândia (mais de 47%).
As recentes medidas de renúncia tributária anunciadas pelo governo corroem esse modelo clássico. A desoneração da contribuição patronal para a previdência social (20% sobre a folha de salário) e as isenções na CSLL, na Cofins e no PIS minam a sustentação financeira e ameaçam o futuro da proteção social brasileira.
Esse movimento acentua uma tendência preocupante. Entre 2006 e 2011, as renúncias fiscais passaram de R$ 79 bilhões para R$ 137 bilhões – o que representa “mais que o dobro do orçamento previsto para o Ministério da Educação” em 2011.2
Cerca de R$ 21 bilhões desse montante são isenções que afetam a Seguridade Social, concedidos às micro e pequenas empresas optantes pelo Simples, ao agronegócio e a entidades beneficentes de assistência social. Em 2011, a Previdência Urbana foi superavitária em R$ 40 bilhões. Com as renúncias, esse superávit caiu para R$ 19 bilhões.
As recentes medidas provisórias 540 e 563 acentuam essa tendência. Estima-se que as desonerações já concedidas em 2012 implicarão redução de R$ 7 bilhões da receita previdenciária. As consequências políticas são evidentes: em breve, as forças do mercado voltarão com o mantra apocalíptico de que, “sem uma nova reforma da Previdência, o país será ingovernável”.
Fim do círculo virtuoso?
O objetivo do governo é ampliar a competitividade da indústria e reativar a economia. Corretamente atuou no que é central: reduziu juros e desvalorizou o câmbio. Mas, adicionalmente, está rebaixando o custo do trabalho pela redução de encargos. Esse ponto é questionável. Diversos estudos demonstram que os salários são cronicamente baixos no Brasil e que os encargos sociais estão em linha com parâmetros internacionais. Isso sem falar na elevada rotatividade da mão de obra, um perverso mecanismo utilizado pelas empresas para rebaixar salários. Observe-se que a rotatividade alcançou o mesmo patamar dos mais de 10 milhões de empregos criados nos últimos anos.3
O plano em marcha será aprofundado. Segundo a imprensa, o governo adotará novas medidas cujo foco será “a redução do custo do país”. A “desoneração tributária será geral”, avisou a presidente da República.4
A partir de 2007 procurou-se conjugar crescimento e inclusão social. A melhoria do mercado de trabalho e a recuperação do valor real do salário mínimo impulsionaram as receitas fiscais, incrementando as contas públicas e reduzindo as restrições para o gasto social. Ampliou-se percepção de que o gasto social pode ser um elemento estratégico para incentivar o desenvolvimento.5
O crescimento e a melhoria do mercado de trabalho fortaleceram as fontes de financiamento da Seguridade Social. O aumento do valor dos benefícios atrelados ao salário mínimo ampliou o efeito distributivo das transferências monetárias da Seguridade Social. Observe-se que, em meados de 2011, a Seguridade Social concedeu 35,8 milhões de benefícios diretos, assim distribuídos: Previdência Urbana (16,6 milhões); Previdência Rural (8,4 milhões); Benefício de Prestação Continuada aos idosos pobres e pessoas com deficiência (3,8 milhões); e seguro-desemprego (7 milhões). Cerca de 28 milhões de benefícios estão atrelados ao piso do salário mínimo e foram majorados na mesma proporção de seu reajuste.
Esse fato também contribuiu para a ampliação do mercado interno, que tem sustentado o ciclo de crescimento. Assim como os salários, o aumento real dos benefícios da Seguridade Social alimentou o círculo virtuoso de consumo, investimento, produção e geração de empregos. A anunciada “desoneração geral” ameaça a sustentabilidade financeira da Seguridade Social e poderá minar um dos núcleos do crescimento.
Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do século XXI
Este e os próximos três artigos foram escritos por membros do núcleo Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI. Multidisciplinar e suprapartidário, a articulação reúne pesquisadores, ativistas e profissionais em políticas públicas com o foco nas políticas sociais. Inclui profissionais de mais de duas dezenas de universidades, centros de pesquisa, órgãos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento social. Pretende contribuir para a formulação de uma agenda social que enfrente as mazelas socioeconômicas seculares que afligem a maioria da população brasileira. Também espera superar um sentimento de isolamento e de incômoda resignação ante os rumos do debate nacional pautado pelas forças do
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).