Violência contra o Estado Laico no Rio de Janeiro

Casos de estupro, risco de morte materna e anencefalia do feto em que o aborto legal é previsto pela legislação brasileira correm risco de revisão na legislação estadual fluminense. Projeto de Lei nº 416/2011, proposto por bancada evangélica, recebeu 12 emendas desde 2011 e foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça ontem, 19 de novembro, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

O projeto institui no Estado do Rio de Janeiro, o Programa Estadual de Prevenção ao Aborto e Abandono de Incapaz. Estupro e gravidez indesejada ou acidental (em que a mulher não disponha de meios e apoio para uma gestação segura), é previsto:

I. Oferecer toda assistência social, psicológica e prenatal, inclusive laboratorial, de forma gratuita por ocasião da gestação, do parto e período puerpério;

II. Conceder à mãe o direito de registrar o recém nascido como seu, ainda na maternidade, assumindo o pátrio poder e incluí-la nos programas de assistência, até que esta consiga suprir as necessidades da família;

III. Orientar e encaminhar através da Defensoria Pública os procedimentos de adoção, se assim for a vontade da mãe e da família;

IV. Instituir diretamente ou sob forma de convênio com os Governos Federal e Municipal, rede de atendimento à saúde da mulher.

 

Gravidezes em que o feto não tem condições de sobrevivência nem são mencionadas.

 

Sob argumento de que o aborto é crime e deve ser reprimido e evitado, sem exceções, o projeto contraria a lei brasileira que legitima o abortamento decorrente de estupro, quando há risco de vida para a mulher e em casos de anencefalia do feto. Nestes casos, não há crime a reprimir ou evitar, de acordo com o Código Penal de 1940 e com decisão do STF de 2012 (ADPF 54).

Desde 2011, quando entrou em pauta, o PL vem sendo criticado por setores que defendem os direitos das mulheres de recorrerem ao aborto nos casos de estupro, risco de vida e anencefalia, pois tem roupagem assistencialista e desconsidera a legislação vigente.

O projeto ignora que todos os itens propostos já são direitos adquiridos pelas mulheres brasileiras no âmbito do SUS. A assistência social, psicológica e pré-natal já ocorre nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), não havendo necessidade de duplicar o serviço, o que promoveria ineficiência no uso do já escasso recurso público em saúde e, portanto, seria caracterizado como improbidade administrativa.

Além disso, ele não prevê o acesso a métodos contraceptivos e não proporciona educação sexual de qualidade à população, meios mais eficazes de planejamento familiar e cidadania sexual negligenciados pelo PL.

Ao sugerir que estes serviços sejam prestados “sob a forma de convênios”, o projeto favorece a apropriação do fundo público pelo setor privado sem que haja qualquer necessidade para isto, uma vez que os serviços de saúde são todos prestados diretamente pelo Estado nas UBS e integralmente pela (já existente) Rede de Atenção à Saúde da Mulher.

Isto demonstra o completo desconhecimento do SUS e do seu funcionamento por parte dos deputados propositores do Projeto de Lei nº 416/2011. No mínimo, deveria ser realizada ampla audiência pública com acadêmicos do tema, gestores do SUS e população em geral antes que a votação prosseguisse, à surdina.

Um parecer contrário, que questiona a constitucionalidade do PL, foi elaborado pela Comissão de Bioética e Biodireito da OAB RJ e apresentado a parlamentares da Alerj. Porém, o parecer sequer foi debatido no processo de tramitação do PL 416/2011.

Surpreendendo segmentos contrários à proposta, o projeto foi colocado na Ordem do Dia da Alerj em 12 de novembro, em regime de “tramitação ordinária”, para votação em 1ª discussão – isto, mediante “requerimento”, o que caracteriza agendamento de urgência. Não houve quórum e não houve qualquer debate. As comissões que avaliaram o PL 416 aprovaram todas as emendas a ele interpostas, mesmo com o parecer da OAB tendo sido formalmente anexado ao processo.

 

Estado Laico, Democracia e Direitos Sexuais e Reprodutivos

O projeto pronatalista em curso na sociedade vem angariando adeptos uma vez que o discurso religioso ganha força, ignorando o direito individual de mulheres e interferindo no planejamento familiar de muitas famílias, pois nenhum método contraceptivo disponível atualmente é 100% eficaz.

À medida que cidadãos veem sua liberdade e autonomia de escolha cerceadas, a laicidade do Estado brasileiro assegurada pela Constituição de 88 fica comprometida quando sofre interferência de comunidades religiosas e seus dogmas. A democracia, enquanto governo do povo, tem o dever de garantir e proteger os direitos individuais e institucionalizar a liberdade – tanto do viver em sociedade quando da vontade individual.

Neste sentido, a assistência social, psicológica e pré-natal, inclusive laboratorial especial, pretendida pelo PL 416/2011 – quando estas já existem e em caráter universal garantido por lei – é discriminatória e lhe dá caráter invasivo, que extrapola limites ao querer gerir e interferir na vida privada e familiar das pessoas, em particular das mulheres mais vulneráveis.

Tratados internacionais de direitos humanos vêm ratificando, desde a década de 90, os direitos humanos sexuais e reprodutivos – incluindo o direito das mulheres. Para sua implementação, o Brasil assumiu obrigações internacionais e vem se distanciando desses compromissos na medida em que permite que projetos como este ameacem a integridade da saúde de suas mulheres.

A proposta de “amparo” às mulheres sugerida pelo projeto é uma afronta não somente à democracia e ao direitos sexuais reprodutivos que garantem liberdade de escolha, mas por ir de encontro ao direito à saúde assegurado na Constituição à medida que dificulta o acesso aos serviços de saúde que garantem o aborto seguro nos casos previstos em lei.