Circuncisão e parceria sexual
Por Drauzio Varella*
Em medicina , nem sempre o que parece lógico resiste à análise criteriosa dos números. É o caso da transmissão do vírus da Aids (HIV) nos continentes. Na maior parte do mundo, a epidemia se espalhou predominantemente entre homens que fazem sexo com homens, mulheres com múltiplos parceiros e entre os usuários de drogas injetáveis e suas parceiras sexuais. Nos países da África situados abaixo do deserto do Saara, entretanto, o HIV se disseminou pela população heterossexual.
Dois em cada três casos de Aids existentes no mundo ocorrem nessa região. Em nove países do sul do continente mais de 12% dos adultos estão infectados. Como explicar o caráter devastador da epidemia africana? Desde a ocorrência dos primeiros casos, as causas têm sido atribuídas à pobreza, à falta de acesso à assistência médica, às guerras, ao analfabetismo e à posição subalterna das mulheres na sociedade. De fato, parece lógico. No entanto, depois de quase 30 anos de acompanhamento da epidemia, as estatísticas contradizem essas suposições.
Análise publicada pelo Demographic and Health Surveys sugere que a pobreza não coloca obrigatoriamente as pessoas em situação de risco. Inquéritos realizados em oito países identificaram associação clara entre maior poder aquisitivo e infecção pelo HIV. Por exemplo, no Quênia, a prevalência entre as mulheres mais pobres é de 4%, enquanto atinge 12% entre as mais ricas.
Pesquisas realizadas com casais discordantes (em que apenas um dos parceiros é HIV-positivo) revelaram que em 32% a 64% das vezes a mulher é a parceira infectada, contrariando o clichê da mulher submissa ao marido devasso. Palcos recentes de guerras fratricidas, genocídios e estupros generalizados, como Angola, Congo e Ruanda, foram menos afetados pela epidemia do que países pacíficos e bem mais ricos, como são os casos de Botsuana e Suazilândia, campeões mundiais em prevalência do HIV.
É importante lembrar que nem todas as áreas da região sub-saariana vivem as agruras da transmissão heterossexual indiscriminada. Nos locais em que a multiplicidade de parceiros sexuais é acontecimento incomum e, especialmente, naqueles em que a circuncisão dos meninos é realizada por imposição religiosa, a epidemia ainda se restringe aos grupos de risco clássicos, com poucos casos em heterossexuais que nunca usaram drogas injetáveis.
Na Nigéria, país muçulmano com um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano, em que a circuncisão é universal e o comportamento sexual obedece a normas rígidas, a prevalência do HIV é 0,7%. Em Botsuana, segundo país mais rico abaixo do Saara, em que ambos os sexos referem altos índices de multiplicidade de parceiros sexuais concomitantes, estão infectados 25% dos adultos.
Interpretar os resultados desses estudos é fundamental para definir estratégias futuras de combate à transmissão do vírus, nos países mais atingidos. Sabemos que intervenções, como testar os doadores de sangue e prevenir a transmissão materno-fetal por meio da administração de antivirais às mulheres grávidas, são de alta eficácia, mas beneficiam uma parcela pequena da população.
Já a circuncisão masculina pode ter grande impacto preventivo. No oeste da África, onde essa prática é comum, a prevalência do HIV continua baixa até hoje. Os três últimos estudos planejados com o objetivo de comparar a prevalência do vírus entre homens submetidos ou não à circuncisão, foram interrompidos por razões éticas quando os resultados iniciais demonstraram que o procedimento reduzia em 60% o risco de contrair o HIV.
Modelos estatísticos sugerem que na África abaixo do Saara, a circuncisão poderia evitar 5,7 milhões de novas infecções e 3 milhões de mortes, nos próximos 20 anos. Além da circuncisão, programas preventivos destinados a promover a redução do número de parceiros sexuais têm demonstrado resultados muito positivos em Uganda, Quênia, Zimbábue, Costa do Marfim, Etiópia, Malaui e Suazilândia.
Na Suazilândia, depois de uma campanha agressiva com uso dos meios de comunicação de massa, conduzida em 2006, o número de mulheres e homens com dois ou mais parceiros sexuais concomitantes caiu pela metade. No combate à epidemia heterossexual, a tendência para os próximos anos é a de dar ênfase a duas estratégias: promover a circuncisão e a redução do número de parceiros sexuais.
(*) Drauzio Varella é médico cancerologista, formado pela USP. Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na edição de 25/10/08.