Meio século após tragédia, País ainda vive falta de estrutura para queimados

O Estado de S. Paulo – 18/12/2011

Cinquenta anos atrás, o País registrava o pior acidente com queimados da sua história. A lona do Gran Circo Norte-Americano incendiou-se no espetáculo de estreia, em 17 de dezembro de 1961. O mastro veio abaixo, prendendo 2 mil espectadores entre as chamas. O fogo durou 10 minutos, matou 503 pessoas, pois a assistência ainda era precária, e deixou centenas de feridos.

Em cinco décadas, a prática médica evoluiu, novas técnicas foram desenvolvidas, o queimado passou a ser visto como paciente prioritário que precisa de intervenção precoce – no passado, era o último a ser operado, por exemplo, para evitar a contaminação do centro cirúrgico. Mas o atendimento ao queimado ainda precisa avançar no País. Não existe um só hospital destinado exclusivamente a esse tipo de paciente, como ocorre em outras especialidades, como câncer, cardiologia e ortopedia.

“A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza um leito para queimado para cada 30 mil habitantes. Uma cidade como o Rio deveria ter 200 leitos e não tem um quarto disso”, diz o cirurgião plástico Luiz Macieira Guimarães Júnior, chefe do Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Hospital Federal do Andaraí, que faz cerca de mil procedimentos mensais, entre cirurgias, internações e atendimento ambulatorial.

Segundo o Ministério da Saúde, há apenas 45 hospitais habilitados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o atendimento a queimados no País e mais da metade (27) está na Região Sudeste. São 188 leitos, o equivalente a uma vaga para cada 1 milhão de habitantes, bem abaixo do recomendado pela OMS.

As principais causas de queimaduras são os acidentes domésticos com líquidos aquecidos, a manipulação do álcool líquido e os incêndios com inalação de fumaça. A queimadura destrói o maior órgão de defesa: a pele. Composta por três camadas (epiderme, derme e hipoderme), ela impede que bactérias e germes ataquem o organismo. Sem essa barreira, o paciente está exposto a infecções. Por ser um extremamente frágil, ele precisa de ambiente isolado, esterilizado.

O CTQ do Hospital das Forças Aérea do Galeão (HFAG) é referência na América Latina. Lá, a maca que traz o paciente da rua não tem acesso ao hospital – transferido por uma passagem no setor de admissão, o ferido é imediatamente submerso em banheira com água morna e filtrada.

Uma tubulação especial joga ar puro sobre os leitos e o centro cirúrgico, para evitar a contaminação do paciente. Só profissionais com roupas especiais têm acesso ao CTQ. Nem mesmo visitas frequentam o lugar. As famílias têm contato com a pessoa internada pelo lado de fora do quarto, por uma janela de vidro, e conversam pelo interfone.

“Temos corredores de serviço e a manutenção é feita pelo lado de fora para garantir que o ambiente continue esterilizado”, afirma o tenente-coronel médico Marcos Leiros, chefe do CTQ.

Para o HFAG vão apenas os pacientes graves – aqueles com queimaduras de terceiro grau em mais de 10% do corpo e queimaduras de segundo grau em mais de 25% do corpo; ou aqueles que tiveram queimaduras por agentes químicos, descarga elétrica ou radiação ionizante.

O centro recebe militares e tem um convênio com a Petrobrás, que manda para lá os feridos mais graves em plataformas e outras instalações. Mas o CTQ recebe ainda casos especiais, como Thamires Vallejo, que aos 7 anos teve 34% do corpo queimado no incêndio do estúdio Xuxa Park, em 2001; ou os policiais militares que estavam no helicóptero abatidos por traficantes no Morro dos Macacos, em outubro de 2009. O serviço, com 18 leitos não contabilizados na listagem do Ministério da Saúde, recebe entre 50 e 100 pacientes ao ano.

Investimento. O presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, Dilmar Leornardi, defende a abertura de serviços especializados e de um hospital exclusivo para o tratamento de queimados. “A unidade que trabalho oferece tratamento na fase aguda. O paciente sobrevive, mas a terapia da sequela fica disseminado na rede básica e muitas vezes o ferido não tem atendimento.”

Ele defende ainda a ampliação dos bancos que captam e tratam a pele de cadáver para o transplante de enxerto em pacientes queimados. “Só há três serviços no Brasil. Além de ter bancos e de o enxerto ser remunerado pelo SUS, é preciso que haja campanhas de esclarecimento da população”, afirma Leonardi.

Outra dificuldade diz respeito às novas tecnologias. “Há substitutivos cutâneos importados já aprovados pela Anvisa usados para recobrir a queimadura, e curativos inteligentes, que liberam o princípio ativo de forma programada, mas o fornecimento deles para o SUS depende de cada prefeitura ou Estado. Os pacientes têm conseguido, muitas vezes, depois de recorrer à Justiça.”

Este é a última edição de 2011, na qual está sendo comemorado os 35 anos de existência (e resistência) da revista “Saúde em Debate”. Estamos felizes por saber da importância que a comunidade de saúde coletiva atribui à revista e por conseguirmos consolidar uma publicação com qualidade, respeitando os padrões exigidos para os periódicos, sem perder o enfoque da análise crítica que nos caracteriza.