Saúde partida

Correio Braziliense – 28/12/2011

Autor(es): Wanderley MD Fernandes

Cirurgião, é docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS)

Partida vem da cidade do Rio de Janeiro, que Zuenir Ventura descreveu em 1994, de realidades desumanas. Por assim dizer, em 2011, na saúde pública, ainda coexistem situações chocantes. Nem tanto pelas prerrogativas de autoridades e celebridades que a mídia constantemente veicula, de terem as doenças tratadas com rapidez e resolutividade. Contam-se aos milhares os brasileiros que passarão mais um ano aguardando a oportunidade de tratamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).

Com câncer, aos que conseguiram consultas e diagnósticos, a espera por quimioterapia demorou em média 58 dias e, para serem submetidos a radioterapia, pacientes amargaram longínquos 100 dias, quando não mais. Outros, menos afortunados, esperam, há anos, vagas para serem operados, sem a menor perspectiva de solução.

A pesquisa Survey of Health Care, publicada em outubro pela anglo-brasileira Deloitte & Touche, autentica que mais de 80% dos brasileiros entrevistados estavam insatisfeitos com o tempo de espera por atendimento no SUS e 57% não gostaram da forma como foram tratados pelos médicos. Inacreditável: um sistema de 23 anos de idade, que proporciona mais de 500 milhões de consultas médicas/ano e 1 milhão de internações por mês, ainda seja avaliado em vários graus de insatisfatório pela população brasileira.

Em 1911, Frederick Taylor (1856 -1915) estabeleceu os parâmetros da administração científica e da aplicação de análises do trabalho eficaz. Em 1920, o estatístico americano Walter Shewhart (1891-1967) desenvolveu sistema para mensuração de variáveis que culminou no Ciclo Deming Gestão da Qualidade. Muitos anos se passaram e ainda não se tem um padrão de desempenho na assistência médica pública.

Entre conceitos hoje universais, palavras-chave e imprescindíveis abre-portas para políticas públicas destacam-se cidadania e sustentabilidade, que, combinadas a qualidade e aliadas a eficácia e retorno sobre investimento, reúnem as metas indispensáveis a qualquer trabalho humano. Revestem-se de suma importância quando se trata de saúde e vidas. Milhões de brasileiros hoje, apesar dos esforços alardeados, ainda vivem sob verdadeira saúde partida em exclusões, mesmo num sistema que consome mais de R$ 77 bilhões por ano e emprega 12 milhões de pessoas.

Para 2012 estimam-se 518.510 casos novos de câncer no país. O acidente de trabalho ainda acometerá cerca de 720 mil trabalhadores, no caso em que as mesmas condições de proteção e prevenção dos últimos anos se repitam, deixando uma conta de mais R$ 100 bilhões e sete vidas ceifadas por dia. A violência no Brasil, em todas as suas formas de manifestação, traz um rastro de mortes que a Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula em 27 por cem mil habitantes, número maior até quando comparado a países em guerra, que não chegam a ter 51.000 cadáveres/ano, deixando um gasto de mais de R$ 15 bilhões aos cofres públicos.

As Estratégias da Carta de Ottawa-Canadá 1986 indicam redirecionamento nos serviços de saúde, preconizando transição do modelo de atenção individual, com responsabilidade de oferecer serviços clínicos e curativos, para a meta de ganhos em saúde. Paulo Buss, da Fiocruz, ratifica “a necessidade de substituir a abordagem comportamental, de responsabilidade pessoal, por ampla compreensão dos problemas de saúde, considerando ações sobre os determinantes identificados, o caráter coletivo e a capacidade de resolução das comunidades, numa atuação combinada de convergências midiáticas, ambientais e políticas”.

A articulação transversal a vários ministérios, integrada e intersetorial, talvez possa, com intensa promoção e prevenção, reduzir as vulnerabilidades da população e minorar substancialmente o montante de bilhares e bilhares de reais gastos ano a ano com o modelo médico assistencial de intervenção déjà vu.

Agindo sobre os fatores há muito conhecidos, que põem a saúde das pessoas em risco, urge a utilização de métodos multidimensionais na saúde pública, abrangentes e de função pedagógica, esclarecedores e com ampla divulgação, capazes de atingir a multiplicidade dos condicionantes de saúde que devem ser cultuados pela população brasileira, em oposição ao assistencialismo de contradições, em que a regionalização não tem sido econômica, a equidade insuficiente, a integralidade pouco estratégica, a hierarquização incoerente, a resolutividade para alguns e a universalidade partida.