A saúde em contradição

Correio Braziliense – 24/01/2012
Por Roberto Luiz D’Avila, Presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM)

O Brasil vive estranha contradição no que se refere à assistência em saúde. De um lado, pode se orgulhar de possuir um dos maiores modelos públicos com acesso universal do planeta. O Sistema Único de Saúde (SUS) cobre a totalidade da população em ações que incluem vigilância e programas de prevenção (como as campanhas de vacinação) e ainda oferece tratamento para mais de 145 milhões de pessoas, que dele dependem exclusivamente para realizar consultas, exames, cirurgias e internações.

Por outro lado, uma das maiores políticas sociais do mundo sofre com a falta de financiamento que impede que os avanços se multipliquem e se consolidem. O volume de recursos investidos no SUS está aquém das suas necessidades e, principalmente, das possibilidades existentes dentro do caixa público. Em consequência, essa visão distorcida acentua as desigualdades no acesso, impedindo que o Sistema Único alcance plenamente seus objetivos.

Estamos na contramão da história. Estudos comprovam que os países com melhores indicadores de saúde são aqueles com sistemas universais de assistência, com forte participação do Estado no financiamento, na gestão e na prestação de serviços. É o caso de Alemanha, França, Itália, Espanha, Inglaterra e outros. Em todos, a fórmula do sucesso se repete: os governos investem em saúde parcela significativa de seus orçamentos totais, orientando alto percentual do PIB ao atendimento das necessidades da área.

De forma global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o gasto público em saúde equivale a 60%, contra 40% do privado. Há países em que o percentual público chega a 80%, restando 20% para o setor privado. O governo do Reino Unido, por exemplo, elevou de 79,3% para 83,6%, de 2000 a 2008, sua porcentagem de investimento público dentro das despesas totais em saúde. Os gastos do setor privado representam apenas 16,4% das despesas gerais em saúde. Na Alemanha, a proporção é de 77,8% para os gastos governamentais contra 22,20% do privado.

No entanto, o Brasil insiste em descumprir a lição. Aqui, os investimentos do governo na área representam 45%, para cobrir a totalidade dos brasileiros, contra 55% do privado, que, em princípio, atende apenas um quarto da população brasileira. Na comparação das despesas em saúde com o PIB, o Brasil fica, na média global, com 9%. No entanto, ao avaliar o quinhão do investimento estatal, esse percentual cai para 3,5%, enquanto a média internacional fica em 5,5%.

Tínhamos a esperança de que em dezembro essa lógica fosse rompida com a aprovação no Senado Federal do projeto que regulamenta a Emenda Constitucional 29 (EC 29), que define o que deve ser considerado gasto público com saúde. No entanto, após 11 anos de tramitação e luta, assistimos a uma votação que terminou sem garantir a injeção dos recursos esperados pelas entidades médicas e pelos movimentos sociais para o SUS.

Não teremos os sonhados 10% das receitas correntes brutas da União. Na prática, em 2012, o nível federal aplicará o empenhado em 2011 (R$ 72 bilhões) mais a variação do PIB de 2010 para 2011, somando cerca de R$ 86 bilhões. A medida equivale ao que já é feito atualmente. A maior parte da fatura continuará com estados e municípios, que ficaram obrigados a destinar, respectivamente, 12% e 15% das suas receitas à saúde. Ou seja, ficamos no mesmo patamar e com os mesmos problemas.

Se os senadores tivessem tido a ousadia da mudança, o cenário seria bem diferente. Com a aprovação do projeto em sua forma original — apresentada por Tião Viana —, a saúde receberia incremento de R$ 35 bilhões, chegando a um orçamento de R$ 107 bilhões. Com esse suporte, o país romperia definitivamente com seu descompromisso histórico e ingressaria no rol das nações que compreendem suas obrigações sociais, justamente aquelas mais desenvolvidas.

Enfim, 2012 já acena com um desafio: retomar a luta pelo financiamento digno da saúde brasileira para que a sociedade possa testemunhar a promessa constitucional. Para nós, médicos, esse é um compromisso que deve ser cumprido.