Pela hora da morte

Lígia Bahia | Publicado em O Globo 

 

Planos que aumentaram 13,55%, mas não pagam diversas partes do tratamento, confundem os pacientes. As dúvidas aumentam diante da profusão de métodos de cobrança puramente comerciais nos ambientes de cuidados com a saúde. Doentes acamados e seus acompanhantes podem ser notificados de modo peremptório sobre preços de remuneração, nem sempre previamente combinados. Até máquinas para pagamento em cartão de crédito de despesas após a realização de procedimentos passaram a ser transportadas nas maletas de alguns especialistas. O mal-estar estendeu-se dos balcões para autorização do atendimento às cobranças de honorários de equipes médicas para os consultórios e leitos e pode se prolongar com os dispêndios com materiais cirúrgicos. Parafusos, fixadores, placas, pinos importados, a parte que os planos negam ou relutam pagar, podem representar entre 50% a 90% do valor de caras cirurgias ortopédicas.

As explicações são simples. Os pagamentos diretos para médicos representariam escolhas por assistência diferenciada. Como se fossem taxas por assistência personalizada livremente escolhida, cujos preços emanam de tabelas de associações médicas ou da reputação profissional. Os planos não os poderiam remunerar, exatamente porque quem tem mais prestígio profissional não é credenciado. A razão para permitir ou não o uso de materiais cirúrgicos não é a mesma, no entanto, tem raiz similar, admite-se custear dispositivos para intervenções médicas, mas não necessariamente os recomendados pelos mesmos. Na hora de pagar, o balanço do que já se pagou pelo plano e as dívidas a serem quitadas com tratamentos gera perplexidade.

Mesmo que a maioria dos médicos costume reduzir valores para acompanhar pacientes que permanecem internados por períodos prolongados, a soma das remunerações dos diversos especialistas tende a ser muito elevada, especialmente se houver necessidade também de saldar despesas com insumos. Os planos com mensalidades muito caras reembolsam parte dos gastos, mas não a totalidade. O segmento coberto com planos com preços menores também é instado a pagar por fora, especialmente por uma assistência profissional mais intensiva e implantes, julgados melhores. Ser atendido e não pagar nem um centavo a mais é possível, desde que no SUS ou nos casos de observância irrestrita aos locais e procedimentos indicados pelas operadoras.

O pré-pagamento aos planos não eliminou as cobranças realizadas após os atendimentos. As peças de propaganda dos planos, escolha de médicos e acesso rápido a procedimentos de última geração, que já se mostravam exageradas ou incorretas nos atendimentos em consultórios, desmontam-se nos hospitais. Desde que o paciente põe o pé à porta, a operadora funciona como autoridade temível e invisível, elevando a probabilidade de decepção. A imposição como alternativa para a cobertura de parcela considerável da população de um setor privado que não tem sustentabilidade, apesar dos subsídios públicos, transformou-se em problema. O SUS, apesar das heroicas batalhas e de ter se tornado a política pública mais capilarizada do país, tampouco aprumou por inteiro. Evitar compreender o que é financiado coletivamente e, portanto, deve ser acessível a todos estimula análises pouco racionais sobre políticas de saúde.

Argumentos que fundamentam os direitos universais à saúde iniciam com a suposição de que os cuidados à população não são similares a outros mercados. Outros já partem da premissa de que saúde é a mais básica e fundamental necessidade humana e que, se os riscos de adoecer diferem, é preciso redistribuir ativamente proteção e assistência dos mais afortunados para os menos, dos saudáveis para os doentes e dos mais prudentes para os menos cautelosos. Um terceiro feixe de alegações sobre a extensão do acesso e qualidade a todos baseia-se no pressuposto que uma razoável condição de saúde é pré-requisito para o exercício de liberdades políticas. São ponderações bastante consensuais, mas demasiadamente abstratas para subsidiar políticas de saúde.

A preocupação constante de impressionar os outros e a falta de objetividade levam a uma falsa aparência de política e poder. Grandes convicções e poucas responsabilidades não resolvem problemas concretos de saúde. Antigos defensores radicais da estatização da saúde passaram de malas e bagagens para o lado oposto e agora proclamam que o SUS é apenas público, e nada relevante acontece. Jogar todas as fichas na prevenção pode estimular propostas igualmente imateriais. Reduzir o uso individual do tabaco, de álcool, usar cintos de segurança, capacetes, realizar exercícios e usar alimentos saudáveis é essencial para a saúde. Mas as atividades setoriais têm limites explícitos. Entender que bom atendimento médico pré-natal não garante qualidade da educação, eliminação da violência e, portanto, infância segura é relativamente simples. Mas seria muita ingenuidade pretender “puxar” pela saúde a solução para a pobreza. Pensar sobre o futuro dos modernos sistemas de saúde sem responder a interrogações cruciais suscita a reedição de soluções inócuas ou fracassadas. Políticas de saúde realistas devem definir claramente: como obter fundos para pagar cuidados decentes para a população; como distribuir os recursos arrecadados de modo justo; como estabelecer limites para alocar tudo o que for gasto e como organizar uma administração confiável e aceitável das ações de saúde.

Ligia Bahia é professora da UFRJ