Mais Médicos evidencia distância histórica entre profissionais e usuários
Formados no exterior criticam preconceito e corporativismo da classe médica brasileira
Daniele Silveira | Brasil de Fato
A imagem do médico cubano Juan Delgado sofrendo ofensas e recebendo vaias ao desembarcar na cidade de Fortaleza (CE), em agosto de 2013, foi um dos momentos mais marcantes do ano. Na cena clicada pelo repórter fotográfico Jarbas Oliveira, o médico negro é insultado por um grupo de médicas brasileiras, com características bem parecidas: jovens e brancas.
O lançamento do Programa Mais Médicos pelo governo federal, um mês antes, colocou em debate não só a situação da saúde pública no país, mas também a própria formação e atuação dos profissionais brasileiros. A política de “importação” de médicos estrangeiros foi amplamente combatida por setores conservadores da classe médica.
Perfil oposto ao da maioria dos estudantes de medicina no Brasil, Cíntia Santos Cunha, que faz o curso em Cuba, afirma que um dos motivos que a levaram a estudar no país caribenho foi a falta de oportunidades. Ela lamenta a realidade brasileira, na qual cursos de medicina são extremamente elitizados.
“Eu já desde muito nova queria fazer medicina. Acho que com 16 anos já queria fazer medicina. Só que medicina é um curso impensável para as pessoas de onde eu venho, para as pessoas como eu, negra, mulher, pobre. No Capão Redondo [zona sul paulistana] ninguém sonha em ser médico.”
Através de uma amiga já inserida no sistema educacional de Cuba, Cíntia pode conhecer as características do modelo de saúde daquele país, “de caráter mais humanitário”. O encantamento foi instantâneo e em pouco tempo chegava sua vez de embarcar.
Antes da chegada dos primeiros médicos cubanos ao Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deu início a uma campanha que buscava colocar em dúvida a credibilidade dos profissionais que seriam contratados. De imediato, o órgão anunciou que o Programa Mais Médicos “desrespeita a legislação, fere os direitos humanos e coloca em risco a saúde dos brasileiros, especialmente os moradores das áreas mais pobres e distantes”.
Sobre a postura do CFM, Cíntia avalia que a classe médica brasileira teme perder o controle sobre as vagas que estão desocupadas, o que permite a pressão por altos salários. Além disso, ela considera que o combate ao programa acontece por medo que o contato com os médicos cubanos desperte na população brasileira um novo entendimento da medicina.
“É o medo de que comece a mudar a mentalidade da população em relação ao que deve ser um médico e como deve ser o tratamento médico. Porque o que eu vejo tanto no atendimento que minha família recebe aqui no Brasil é que o paciente chega no consultório e o médico não olha para ele. O paciente diz o que já está sentindo, o médico sem olhar para a cara dele, muito menos tocar no paciente, dá alguma receita de medicamento ou manda fazer alguma análise diagnóstica complementar.”
Cíntia questiona um aspecto fundamental presente na mentalidade das escolas de medicina brasileiras que, segundo a estudante, tratam a saúde como um negócio. “A gente deve além de examinar, tocar o paciente, a gente deve ensinar o paciente diabético, hipertenso, por exemplo, a cuidar da própria saúde. Ou seja, eu ensino o paciente a cuidar da própria saúde, a manter equilibrada a sua diabetes, a sua hipertensão. Ele não precisa voltar mais comigo e isso não é interessante para quem faz a medicina um comércio”, afirma Cíntia.
Além de melhorar a infraestrutura dos hospitais e unidades de saúde, o Mais Médicos tem como objetivo levar médicos para as regiões mais carentes do país. O Ministério da Saúde estabeleceu como meta fechar o ano de 2013 com 6,6 mil médicos atuando no programa.
Nesse contexto, o cubano vaiado, Juan Delgado, reagiu aos críticos que não aceitaram os termos da contratação, que é feita por meio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Com vasta experiência, Delgado já atuou no Haiti e disse que veio ao Brasil por vontade própria. “Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário. Os médicos brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós: ir aos lugares mais pobres prestar assistência.”
Revalidação
No mês de agosto, em entrevista ao repórter da página do MST, José Coutinho Júnior, a médica brasileira formada em Cuba Andreia Campigotto questionou o modo como as provas de revalidação do diploma são feitas. Segundo ela, os testes não refletem o nível de conhecimento de um médico recém-formado.
“Há um grande preconceito da categoria médica com os profissionais que se formam em outros países, o que é um entrave grande para a revalidação dos nossos diplomas. Acabam fazendo provas injustas. São provas que seriam de nível de especialistas, o que acaba refletindo numa desaprovação considerável dos estudantes que fazem essa prova de revalidação.”
Andreia revela que os estudantes de medicina da Universidade de São Paulo (USP), uma das mais tradicionais do Brasil, tiveram mau desempenho em uma prova do CFM. No entanto, o resultado foi ignorado por veículos da grande imprensa, que já estavam empenhados em uma campanha anticubanos.
“Uma prova para médico generalista, que não é aplicada para nós, uma prova muito mais fácil que a de revalidação dos diplomas, onde quase 50% dos estudantes reprovaram porque não sabiam tratar uma meningite bacteriana”, pontua Andreia.
Segundo o Ministério da Saúde, dos 400 médicos cubanos que chegaram na primeira etapa do acordo entre o órgão e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), todos já atuaram em outras missões internacionais, além de possuírem especialização em medicina familiar. Em relação à experiência, 84% deles têm mais de 16 anos de atuação.
Os profissionais vindos do exterior têm autorização especial para trabalhar por três anos exclusivamente nos serviços de atenção básica e devem receber um registro provisório dos conselhos regionais de medicina. O registro só é concedido após aprovação na etapa de avaliação, que inclui aulas de saúde pública brasileira e Língua Portuguesa.
Os médicos estrangeiros que participam do Mais Médicos atuam em postos indicados pelo programa e que não foram escolhidos por profissionais brasileiros. Na primeira chamada do programa, divulgada no início de agosto, apenas 6% dos médicos brasileiros que haviam se inscrito confirmaram a participação.
Recebido com simpatia pelos usuários do Sistema Único de Saúde, o Mais Médicos ainda está longe de resolver as demandas do setor. Entre os principais problemas da saúde pública no Brasil identificados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no final de 2010, estão a falta de médicos (58,1%), a demora em ser atendido (35,4%) e a dificuldade em conseguir consulta com especialista (33,8%). Os números foram obtidos em pesquisa de opinião realizada em unidades de saúde de todo o país.