O SUS e a agenda por resgatar
Ligia Bahia
Em se tratando de saúde pública no Brasil, o ano de 2013 teve como principal marca o programa Mais Médicos, que graças a dupla demonstração de menosprezo de entidades médicas perante a situação de desassistência da população e à solução encontrada de importar profissionais formados fora do Brasil, notadamente os cubanos, polarizou o debate e reduziu a agenda da saúde a um único ponto de pauta.
No que se refere ao que se denomina Movimento da Reforma Sanitária houve mudanças extensas e profundas ao longo do ano passado. As duas principais em ordem de importância e encadeamento foram a adesão de importantes sanitaristas a políticas antirreforma e a saída de militantes da Reforma Sanitária ligados ao PT de cargos nas secretarias de governos do PSB.
A concordância tácita ou ativa de determinados militantes com a internação compulsória para viciados em crack representou uma mudança radical nas normas implícitas de acomodação de movimentos, tendências e pessoas sob a etiqueta militante da Reforma Sanitária. As polêmicas sobre a epidemiologia e formas de atuação dos órgãos oficiais da saúde demarcaram uma clivagem entre aqueles que se mantiveram a favor da autonomia dos cidadãos e os que se somaram ao surto de recrudescimento de um higienismo de negócios.
Os desdobramentos da inflexão de posicionamento de determinados sanitaristas podem ser facilmente identificados tanto no que diz respeito à agenda emancipatória, quanto nas ações referentes aos embates mundiais da saúde pública com a indústria, a exemplo do recuo do Ministério da Saúde em levar adiante propagandas sobre doenças sexualmente transmissíveis com conteúdos considerados “pecaminosos” por bancadas parlamentares religiosas e permissividade e até estimulo à propaganda de alimentos infantis ultraprocessados.
Os conflitos em torno da comercialização do anoxerígeno sibutramina explicitaram, didaticamente, uma divisão que altera a geometria dos alinhamentos progressistas versus conservadores: os dois projetos parlamentares apresentados em 2013 que questionam o uso do medicamento, proibido nos EUA e Europa desde 2010, são do PT (deputado Candido Vacarezza) e do PSB (deputado Beto Albuquerque), então duas lideranças da base do governo. Esse novo traçado se estendeu para outras polêmicas, desde as que envolvem o uso disseminado de agrotóxicos e transgênicos até as constantes ameaças ao reconhecimento e garantia das terras dos povos indígenas.
O fenômeno de ruptura das alianças em torno da Reforma Sanitária ficou escancarado com a manobra para reprovar o PLP 321/2013, que reuniu mais de dois milhões de assinaturas, para aumentar recursos para a saúde. Parlamentares do PT, que se autointitulam lideranças dos processos de implementação do SUS, ao relatarem o projeto propuseram a volta da CPMF (agora CSS) e a destinação de 15% em 2017 da receita líquida da União em vez de 10% da receita bruta, conforme o teor original da iniciativa popular.
O balde de água fria nas esperanças de obtenção de recursos para efetivar o SUS universal e de qualidade foi intensificado com a Medida Provisória 619 que anistiou as empresas de planos e seguros de saúde do pagamento de vultosas dívidas tributárias e as isenta na prática de pagar PIS e Cofins. Turbinar a dinâmica de restrição e investimentos de recursos no SUS e no setor privado assistencial respectivamente resulta em uma política de saúde inexoravelmente desfavorável à Reforma Sanitária.
Certamente, o contraponto à cristalização de um sistema de saúde segmentado e submissão da agenda da saúde a transações político-partidários também pautadas pela lógica mercadológica, veio das manifestações nas ruas. O cânone neoliberal, reapresentado sob a faceta da existência de uma nova classe média contra o SUS, foi fortemente questionado.
O eterno receituário para a saúde baseado na resolução do problema da gestão (leia-se privatização) e focalização mostraram-se frágeis diante de imensos movimentos reivindicando saúde e educação públicas de qualidade. Contudo, a força de um agente de mudanças tão expressivo não foi suficiente para reverter a direcionalidade das políticas de saúde. Embora o programa Mais Médicos não obedeça à lógica, cara aos inimigos da universalização, de subsidiar a demanda e represente uma ampliação da oferta pública, não houve mudanças na modulação da política de saúde.
É preciso considerar que o movimento das ruas emergiu em um contexto de realinhamento do movimento sanitário, que mais uma vez se dividiu no apoio entusiasmado de alguns sanitaristas ao programa Mais Médicos e na ponderação de outros sobre seus limites.
Observa-se um gradiente de apoio ou rejeição à diversas iniciativas do governo federal com dois polos nítidos. No primeiro situam-se sanitaristas que ocupam cargos que tendem a aceitar de mau ou bom grado imposições, inclusive de natureza não técnica em temas sobre os quais as evidências científicas são abundantes. No segundo misturaram-se oposicionistas, oportunistas e alguns agrupamentos corporativistas. Os embates entre esses posicionamentos extremos tem sido superficial e rarefeito em termos de densidade propositiva.
O projeto da Reforma Sanitária e os processos para alcança-lo tem sido omitidos ou perderam relevância em função de uma militância que parece incapaz de matizar as necessidades de saúde com a racionalidade da reprodução das máquinas partidárias.
Cabe aos muitos sanitaristas que não se identificam nem com os posicionamentos apologéticos sobre as políticas governamentais, nem com as críticas levianas, a tarefa de recompor as bases da aliança progressista responsável pela aprovação do texto constitucional e levar adiante a reflexão e a implementação da Reforma Sanitária Brasileira.
* Ligia Bahia é professora no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e integrante da rede Plataforma Política Social.