Cria cuervos. Ou, como se degrada uma universidade

Gabriel Cohn

No dia 14 de dezembro de 2013 a então docente da Universidade Católica de Santos-Unisantos Amélia Cohn encontra na sua correspondência e-mail enviado de seu endereço pessoal no final da tarde do dia anterior, sexta-feira 13, pelo coordenador da Pós-Graduação daquela universidade, professor Fernando Fernandes. Em tom formal (com direito a endereço e número da sala) ela é convocada para reunião na segunda feira seguinte, dia 16, “entre 9 e 12 horas” com a coordenação do programa de pós graduação strictu sensu em Saúde Coletiva, em cuja criação teve papel decisivo na década passada. Copiadas na mensagem estavam a coordenadora do programa de Pós, professora Denise Martin Coviello, e a vice-coordenadora, professora Aylene Emilia Moraes Bousquat. Justifica-se o remetente por entrar em contato tão tarde: é que não havia encontrado a docente no seu “recinto de trabalho”. Tema da reunião? Nem uma palavra. De imediato Amélia Cohn responde para confirmar sua presença no dia 16 às 9 horas, não sem manifestar sua estranheza pela suposta dificuldade para localizá-la na sua sala de trabalho ou em sala de aula e pela ausência da pauta da reunião. No dia 16, no horário marcado, ela se apresenta. Estão presentes o coordenador geral e a coordenadora do programa. Encontra-se também à mesa o professor Sérgio Baxter Andreoli, sem cargo no programa naquele momento, embora prestes a ser empossado como coordenador. Uma composição enigmática, pelas presenças e ausências. A reunião resume-se na entrega, pelas mãos do coordenador geral, de carta de demissão da instituição empregadora. Em seguida a ex-docente da casa retira-se, sem ao menos ser cumprimentada e acompanhada até a porta pelos colegas, no desfecho de um processo marcado por situações de constrangimento e agravos morais. Nada de especialmente chocante, dirão alguns. É assim que costumam agir as empresas, com demissões sumárias no contexto de programas de “limpeza” de pessoal, sempre mediante “tratamento de choque”. Não é tão simples neste caso, como passo a expor.

Chamam a atenção algumas peculiaridades. Em primeiro lugar, a demissão (assim como a admissão) é prerrogativa da instituição empregadora, não de departamento ou programa interno a ela. À coordenação do programa cabe indicar aos colegiados e outras instâncias adequadas, seja nomes para admissão mediante concurso regularmente realizado, seja o credenciamento de docentes, seja, no limite, o descredenciamento de algum deles, devidamente motivado e com amplo direito de defesa pelo interessado. A propósito disso, alegou-se (perante questionamentos de terceiros, não em momento algum perante a interessada) que a condição de executores do ato final do processo de demissão fora assumida sob pressão irresistível do reitor, este sim o responsável por tudo. Enfim, coordenadores não demitem, mas, constrangidos, podem indicar nomes.

Pouca vergonha, dirão os mais impacientes. Aqui, porém, antes da justa indignação e do não menos justo desprezo cabe concentrar a atenção em como se deu a coisa. Há abundantes indícios de que essa demissão, e a imediatamente seguinte, da professora Rosa Maria Ferreiro Pinto, antiga pró-reitora, criadora e coordenadora do NEPEC, núcleo de pesquisa credenciado no CNPq e vinculado ao programa de pós graduação em Saúde Coletiva desde 2003, além de figura fundamental na organização e implantação do curso de Serviço Social e do mencionado programa de pós em Saúde Coletiva (neste caso, com a direta colaboração de Amélia Cohn, levada à Unisantos especialmente para esse fim) obedeciam a plano traçado em caráter reservado no interior do próprio programa junto à alta direção da universidade, sem participação direta do colegiado pertinente. Pouco antes das demissões realizou-se concurso de admissão de docentes, com banca presidida pela professora Aylene Bousquat. Havia, naquele momento, três vagas para preencher. Foram aprovados cinco candidatos. Previa-se, pois, que mais duas vagas se abririam em seguida. Pressão do reitor, diriam. Entretanto, quando publicamente interpelada por estudante sobre se aquelas demissões significariam a destruição do programa, a professora Aylene Bousquat traiu-se, respondendo que “nós” (não ele ou eles, nós) queremos, não destruir, porém “tornar melhor” o programa. Os próprios termos da convocação de Amélia Cohn revelam-se expressivos nesse contexto, com suas insinuações sobre negligência funcional. A propósito, cabe lembrar que ela vinha exercendo a docência também na Graduação, não estando pois submetida apenas à coordenação de Pós. Quanto aos estudantes, ou pelo menos uma expressiva parcela deles, é natural que se sintam lesados. Pagam para estudar num programa com determinado corpo docente e de súbito, sem qualquer consulta ou explicação, o vêem mutilado, não por desistência de algum dos seus membros nucleares nem por justa causa, mas por um ato inteiramente unilateral da direção. Não estão recebendo aquilo pelo qual se inscreveram, nem foram consultados ou sequer comunicados a respeito de planos de mudança. São tratados, em suma, como externos à instituição e irrelevantes para ela.

Em termos trabalhistas o processo aqui exposto é inteiramente legítimo. A direção da Unisantos é livre para, respeitada a legislação, demitir quem lhe aprouver no momento que lhe interessar e tem como responder por isso. Causa espécie, sim, o modo de agir. Trata-se de caso modelar de afronta aos cuidados mais elementares de consideração e respeito pelo conjunto da comunidade acadêmica, a começar, é claro, pelas vítimas diretas de ato planejado em segredo por pequeno grupo e executado com extrema truculência. Quem disse que as professoras Amélia e Rosa, que não ingressam agora no mercado de trabalho nem chegaram ontem, não têm nomes a zelar nem compromissos materiais sérios no curto prazo, que poderiam ter sido reorientados se o processo fosse conduzido de forma civilizada? No mínimo em termos morais três integrantes da coordenação (um deles ainda nem confirmado oficialmente no cargo ao participar da “limpeza”) e aquela que esteve ausente na reunião final assumiram dívida de monta. Por sinal, a atitude desta última, a professora Aylene Bousquat, ilustra de modo exemplar o nível de degradação ao qual podem chegar relações acadêmicas que se suporiam pautadas pela civilidade e respeito ao outro. Mestranda e doutoranda com a professora Amélia Cohn na USP e depois, por iniciativa da mestra, sua colega de pesquisa no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (no qual agora ocupa o cargo de vice-presidente), levada mais adiante pela mesma mestra à Unisantos para lá colaborar na sua área de especialidade, não trepidou em participar ativamente do processo cujo desenlace foi aqui exposto, sem se preocupar em momento algum com a mais leve comunicação ou troca de idéias sobre o que estava em andamento. Sua ausência na reunião final representa apenas o último passo na mesma lógica. Neste caso específico não cabem meias palavras. Trata-se de exemplo modelar de traição, em todos os níveis e por todos os modos.

Nada de especial nisso tudo, continuarão a dizer alguns. Ocorre todo o tempo em todos os lugares. Não deixa de ser inadmissível, contudo. E é mais do que hora de trazer à tona casos modelares como esse e tratá-los pelo que são: precisamente inadmissíveis. Em qualquer lugar e, com mais forte razão, em centros de ensino, formação e pesquisa.