A crise não é só do governo, mas de Estado e dos seus modelos econômico e político

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues*

 

Em maio de 2015, quando se acirrava a crise do governo Dilma Roussef, escrevi para o site do CEBES o artigo “A crise não é só do governo, mas do modelo econômico e do sistema político”. Hoje, maio de 2017, retomo este tema quando se abriu a crise terminal do governo Michel Temer, a partir da revelação das gravações de Joesley Batista. Meu argumento, em 2015, era que a crise era muito mais grave do que o ataque conservador ao governo Dilma, havia, na verdade duas crises gêmeas em andamento, uma econômica, outra do sistema político-eleitoral. Pode-se afirmar hoje que é o Estado brasileiro que está em crise, por conta do esgotamento tanto do modelo econômico, como do sistema político, os quais se firmaram a partir do início dos anos 1990, como procuro mostrar adiante.

 

Apesar de termos uma grave crise do Estado, ainda não há nenhuma força parteira da história, para o bem ou para o mal, como ocorreu nas grandes crises do Estado brasileiro anteriores de 1822-24, 1888-1889, 1922-1939, 1961-1964, 1979-1985. O cenário ainda deve piorar muito, até que se possa gestar uma frente política capaz de apontar um caminho verdadeiramente democrático, soberano e inclusivo para o Estado brasileiro. Qualquer saída à direita, será ainda mais desastrosa, tende a ter pequeno respaldo interno para se manter, diferente do que aconteceu com o golpe militar de 1964. O rápido desgaste do governo oriundo do golpe de agosto de 2016, e a altíssima impopularidade de Temer e suas políticas são claros neste sentido. A própria vitória apertada no Tribunal Superior Eleitoral, em 8 de junho de 2017, apenas contribui para prolongar a agonia do governo Temer e, mesmo assim, por pouco tempo, como sugere a erosão crescente de sua base parlamentar.

 

Os modelos econômico e político do Estado brasileiro atual decorrem do processo que levou à crise da ditadura militar brasileiro ao final dos anos 1970, que permitiu a passagem para a democracia em 1985. A crise da ditadura foi causada não só pela crescente perda de legitimidade do regime militar, mas também pela crise da dívida externa provocada pela guinada dos juros norte-americanos decidida por Paul Volcker, presidente à época do FED – o banco central dos EUA. Em pouco mais de um ano, os juros dos títulos do Tesouro norte-americano passaram de cerca de 2% ao ano para 21,5%, dando início a uma crise da dívida externa que não foi só brasileira, mas de toda América Latina, Leste Europeu e África. A grave situação econômica imposta a essas regiões do mundo foi agravada pela política neoliberal do governo Reagan, a partir de 1981, o que criou as condições para a imposição do ajuste estrutural a essas regiões do mundo, determinando a brutal transferência de excedentes econômicos das mesmas para o centro do sistema, ou seja a economia norte-americana, particularmente para seu centro nevrálgico, Wall Street. Tratava-se de uma guinada de 180º em relação ao período anterior, no qual políticas keynesianas haviam permitido a recuperação do sistema capitalista depois das duas guerras mundiais e a construção em diversos países de sistemas de bem-estar social que melhoraram as condições de vida para uma parte considerável da humanidade.

 

Tais políticas, particularmente o ajuste estrutural executado impiedosamente pelo FMI e pelo Banco Mundial, sob controle direto do Departamento do Tesouro e do Federal Reserve norte-americanos impuseram uma nova divisão internacional do trabalho. Encerrava-se o período em que a hegemonia norte-americana convivia com formas de organização econômica de caráter mais ou menos soberano nesses países, seja nos países socialistas do Leste europeu, seja nos países latino-americanos, onde prevalecia a política de substituição de importações, particularmente no Brasil. Aqui, o ajuste estrutural, imposto pelo garrote da dívida, encerrou os cinquenta anos de predomínio do nacional-desenvolvimentismo e abriu espaço, a partir do governo de Fernando Collor de Mello, em 1990, para um modelo econômico subordinado. Esse novo modelo, justificado pelas ideias neoliberais, abriu a economia, promoveu a privatização das empresas estatais, deu início à desregulamentação das relações trabalhistas, promoveu intensa desnacionalização da economia, interrompeu o esforço de substituição de importações colocando a produção das commodities agrícolas e minerais como o motor de nossas exportações e facilitou a crescente financeirização da economia.

 

A partir de então, o Brasil passou a se inserir de forma subordinada na economia internacional, importando cada vez mais produtos industrializados e serviços sofisticados, em troca da exportação de commodities, tal qual nos tempos da colônia. O atual modelo econômico não é capaz de gerar empregos suficientes para uma população de quase 210 milhões de pessoas, nem excedentes tributários capazes de financiar as indispensáveis políticas sociais que assegurem dignidade para a sociedade brasileira. Gera uma dependência científico-tecnológica que se expressa na crescente necessidade importação de bens industrializados de toda ordem. As consequências sobre as políticas públicas sociais e de saúde são enormes, basta ver as consequências do fim da proteção à produção interna de medicamentos decidida no governo Collor e a aceitação submissa da legislação patentária nos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso (FHC), assunto que interessa diretamente ao Movimento Sanitário. A devastação na capacidade de produção de farmoquímicos fez com que a fabricação interna caísse de 80% das necessidades em 1990 para menos de 20% em 2015. Em função disso, o país se tornou tão vulnerável do ponto de vista econômico e sanitário que já não temos condições sequer de tratar a sífilis congênita, que depende de um antibiótico relativamente simples como a penicilina benzatina. A situação é tão grave que levou o Ministério da Saúde a declarar um alerta sanitário em 2016, embora o mesmo não tenha tomado qualquer medida favorável à produção do medicamento pelos laboratórios oficiais.

 

A vulnerabilidade do modelo econômico atual foi disfarçada durante os anos 2000, porque o acelerado crescimento chinês inflou os preços das commodities brasileiras, gerando uma ilusão de crescimento e bonança interna. A política econômica do governo Lula, apesar da retórica mal costurada do chamado ‘neodesenvolvimentismo’, teve como sua verdadeira face o estímulo aos chamados ‘campeões nacionais’, que inflou as fortunas de figuras como Eike Batista, os irmãos Wesley e Joesley Batista, do grupo JBS, a BRFoods e outras, todas empresas exportadoras de commodities. Dessa forma, os governos petistas não só mantiveram, como estimularam o aprofundamento do modelo subordinado. A crise de 2008 a redução do ritmo de aumento das importações de commodities pela China derrubaram as cotações desses produtos e junto com elas as ilusões do crescimento fácil com base no modelo subordinado. Apesar da promessa de Lula de que a crise internacional só chegaria para nós como uma ‘marolinha’, o Brasil mergulhou na mais profunda depressão econômica de sua história. Vivemos nos anos 2000 a ilusão do ouro dos tolos. A partir de 2008 fica a cada dia mais claro que o atual modelo econômico esgotou-se e terá de ser substituído com urgência, ou estaremos condenados a um retrocesso sem paralelo na história. A tentativa desesperada do governo Temer de aprofundar esse modelo, com medidas ultraliberais, só vem contribuindo para agravar ainda mais a situação.

 

O sistema político-eleitoral que sustentou este modelo econômico foi decorrente das medidas engendradas pelo general Golbery do Couto e Silva no governo Ernesto Geisel e que visavam dar uma sobrevida à ditadura militar diante do fortalecimento do velho MDB. A primeira delas foi o Pacote de Abril de 1977, que distorceu os critérios de representatividade eleitoral em favor das regiões dominadas pela antiga Arena e pelas oligarquias retrógradas que apoiavam o governo, as consequências podem ser avaliadas pelo fato de que um eleitor de Roraima – o estado menos populoso – valer por 12,3 paulistas, do estado mais povoado do Brasil. A segunda – a reforma partidária de 1979 – visava esfacelar o partido de oposição, o MDB, e facilitou de tal maneira a criação de novos partidos, que temos hoje 32 partidos com representação no congresso, com vários outros em formação, contra apenas cinco em 1989. Tal fragmentação torna qualquer governo refém de uma ampla coalizão de partidos, muitos deles meras legendas de aluguel, dominada por oligarcas reacionários. A amplitude das coalizões de governo vem impedindo que se dê qualquer rumo estratégico para o país, tendo impedido, ou descaracterizado qualquer programa de governo eleito. A crescente fragmentação do quadro partidário gerou, dessa forma, o presidencialismo de coalizão – expressão cunhada por Sérgio Abranches, em 1988 – o qual elevou o número de partidos no governo a crescer de uma média de três, no início dos anos 1990, para uma média de nove no final dos governos petistas.

 

Outra característica de nosso sistema político-eleitoral, vem dos anos 1930, que consagrou circunscrições eleitorais que correspondem ao território dos estados. Por não termos nenhuma forma de distrito eleitoral, os votos têm de ser disputados em territórios imensos, que exigem acordos e campanhas eleitorais dispersos em territórios imensos e tornaram nossas eleições umas das mais caras do mundo. Para sustentar tal sistema são necessárias montanhas crescentes de dinheiro, que geraram o sistema político provavelmente mais corrupto do mundo. Tal sistema não foi reformado na passagem do regime militar para a democracia, em 1985-1988, porque não tivemos uma assembleia constituinte, mas um congresso constituinte, eleito pelas regras já existentes. Nossos constituintes eram vencedores nessas regras, não tiveram qualquer motivação para alterá-las e as bases do sistema político-eleitoral são essencialmente às mesmas até hoje, com as sérias consequências que estamos vivendo.

 

Assim como o modelo econômico, o sistema político-eleitoral também se esgotou. A fragmentação partidária forçou o Poder Executivo a se tornar um condomínio frouxo de um número crescente de partidos incapaz de governar. A estrutura eleitoral e os custos financeiros decorrentes tornaram o sistema dependente da criminosa simbiose entre os grandes grupos econômicos e os políticos que nos condena a assistir escândalos e mais escândalos de corrupção, que se tornaram mais evidentes principalmente depois do início da Operação Lava-Jato iniciada em março de 2014. Os poderes Executivo e Legislativo tornam-se crescentemente inoperantes, gerando crescente judicialização da política, fazendo que a maior parte das decisões relevantes sejam levadas ao Supremo Tribunal Federal. Em função do acirramento da conjuntura política, a partir das manifestações de 2013, houve, inicialmente, uma certa leitura maniqueísta da Operação Lava-Jato, que a identificou apenas com o golpismo contra o governo petista, gerando a argumentação de que estaria ocorrendo um ‘golpe jurídico e parlamentar’. Hoje, quando a continuidade da mesma atingindo até mesmo as cúpulas do PMDB e do PSDB e o próprio Michel Temer, fica evidente a fragilidade de tal interpretação. Estamos assistindo, na realidade, ao colapso do sistema político, a solução para a crise política não está nem Congresso Nacional, incapaz de reformar as regras atuais, por ser fruto das mesmas, nem em meras eleições diretas, que embora necessárias, serão conduzidas pelas mesmas forças que dominam o atual Congresso.

 

As origens do modelo econômico e do sistema político-eleitoral são distintas, mas o segundo foi funcional para o primeiro. O regime militar reforçou as oligarquias tradicionais, secularmente ligadas ao latifúndio, ao mesmo tempo que o agronegócio se desenvolvia a largos passos no Brasil, reforçando o poder econômico das mesmas. Fortalecidas política e economicamente, essas oligarquias puderam reinar, junto com os interesses das altas finanças e da mineração privatizada no modelo liberal e periférico iniciado por Collor, consolidado por FHC e continuado por Lula e Dilma. Durante quase todos os anos 2000, a ‘carona da China’ – cujo crescimento inflacionou nossas commodities – gerou a ilusão do ouro dos tolos, que inclusive estimulou as viagens internacionais da classe média – uma espécie de ‘Bolsa Miami’. Essa situação permitiu a política de conciliação de classes em que Lula e Dilma davam uma mão para o MST e outra para Luiz Fernando Furlan da Sadia/BR Foods, ou para Kátia Abreu, representantes do agronegócio. A crise de 2008 ao derrubar os preços das nossas commodities acabou com as bases da relativa bonança, acirrou o conflito distributivo e causou principalmente o rancor da classe média que a levou momentaneamente para os braços da direita fascista dos recém criados Movimento Brasil Livre (MBL) e ‘Vem para Rua’, facilitando o impeachment de Dilma e a ascensão do governo ultraliberal de Michel Temer.

 

A virada à direita, levou Michel Temer ao governo provisório em maio de 2016 e definitivo em agosto do mesmo ano. Esse governo, constituído de forma ilegítima, pôde contar com ampla base no Congresso mais conservador de nossa história, mas com baixíssima popularidade. Suas medidas reacionárias pretendem destruir as conquistas sociais dos últimos 30 anos e vem promovendo um brutal ajuste econômico e financeiro, que geraram um desemprego de dois dígitos, e a maior depressão econômica da história. Como resultado, até a classe média que apoiara nas ruas e em panelaços o golpe parlamentar de 2016 saiu das ruas e vem esboçando um afastamento das lideranças fascistas. A perda de empregos, dos planos de saúde privados, aliadas à continuidade e agravamento dos escândalos de corrupção, esvaziaram, pelo menos por hora, a capacidade da direita galvanizar parte das classes médias. As ruas vêm sendo ocupadas cada vez mais pelo movimento popular e pela oposição de esquerda que se mobilizam de forma crescente contra as reformas econômicas e sociais de caráter reacionário do governo. O movimento social demonstrou sua força tanto na histórica greve geral de 28 de abril passado em todo o país, quanto na manifestação em Brasília no último dia 24 de maio, selvagemente reprimida pela política.

 

O breve governo Temer está se dissolvendo numa velocidade impressionante e vem perdendo condições de se sustentar por muito tempo. Suas pretendidas reformas trabalhistas e previdenciária vêm fazendo crescer a oposição popular. Sua política de austeridade econômica vem magnificando a crise e revelando cada vez mais revelando seu verdadeiro objetivo, que é a redução dos preços dos ativos brasileiros, para facilitar sua venda a preços de banana para o capital estrangeiro. Isto se comprova pelo grande aumento dos investimentos externos em plena crise. Tal política além de criminosa é anacrônica, porque pretende realinhar o Brasil aos interesses econômicos dos EUA, exatamente quando o governo Trump fez uma nova guinada econômica de 180º, passando a adotar um protecionismo econômico radical na tentativa desesperada de enfrentar a ascensão chinesa. Ao contrário da guinada neoliberal de Reagan, que forçou a abertura internacional dos mercados via neoliberalismo, Trump está fechando a economia para tentar reconstruí-la de forma protecionista. Tal guinada inviabiliza o caminho ultraliberal adotado pelo efêmero governo Temer, ao mesmo tempo que abre uma imensa oportunidade para a economia brasileira.

 

É preciso reconhecer que o retorno a um mundo multipolar, marcado pela disputa hegemônica entre China e Rússia, de um lado, e os EUA, de outro, pode abrir espaços para que o Brasil volte a procurar se desenvolver em bases soberanas, como o fez entre 1930 e 1980. Os enormes território, população e mercado brasileiros, e o fato de contarmos ainda com um parque industrial de porte, embora enfraquecido, nos permite buscar tirar proveito da divisão internacional. Por fazer parte dos BRICs, o Brasil conta com acesso ao Novo Banco de Desenvolvimento desse grupo, que têm capital maior do que o Banco Mundial. A participação nos BRICS também pode servir de base para a aproximação científica e tecnológica com a China, Índia e Rússia. No campo da saúde, por exemplo, a opção chinesa e indiana pela engenharia reversa para a produção de produtos farmacêuticos, mostra que é possível romper com a subordinação e vulnerabilidade numa área tão vital. Nossas grandes reservas internacionais, de mais de 370 bilhões de dólares, que têm elevado custo de manutenção é altíssimo, também permitem a criação de um fundo soberano capaz de alavancar grandes investimentos que modernizem nossa defasada infraestrutura de transportes, moradia e saneamento, gerando reativação da economia e geração de milhões de empregos.

 

Nada disso é possível, entretanto, no quadro da opção ultraliberal do moribundo governo Temer. Infelizmente, entretanto, quadro de fragmentação da oposição ao mesmo, ainda não permite que se anteveja a formação de uma frente política de caráter nacional e popular capaz de elaborar e tocar um projeto econômico e político que tirem o país do caos. Vivemos uma situação paradoxal em que as forças de direita e seu modelo econômico e político entram em colapso e a esquerda e o movimento popular não desenvolveram consciência e capacidade de organização para virar o jogo de forma significativa. A atual correlação de forças dificulta uma transformação radical da situação em que nos encontramos. Mas a crescente deterioração tanto do governo, quanto da qualidade de vida em função da direção ultraliberal por ele imprimida vem estimulando o crescimento das lutas populares. Isto certamente contribui para a ampliação e o aprofundamento da consciência sobre as desigualdades, os privilégios, a corrupção, num ritmo inédito em nossa história. Resta a esperança de que o crescimento das lutas nas ruas ajude a aprofundar a consciência e forjar uma capacidade de organização ainda inexistente nas forças populares.

 

É enorme a responsabilidade das forças de esquerda, populares e democráticas no sentido da construção de um projeto de poder alternativo. O momento atual clama pela construção da união entre essas forças. Nesse processo será importante ter cuidado para não se repetir a fracassada experiência de conciliação de classe promovida pelos governos petistas, assim como não desenvolver uma visão sectária em relação ao PT e movimentos sociais a ele ligados. É hora de aprender com os erros e buscar a união sem sectarismo, para se poder formar uma frente popular e democrática capaz de redefinir os rumos do Estado brasileiro, abrindo espaço para um modelo de desenvolvimento econômico e social includente e soberano, assim como um sistema político-eleitoral profundamente democrático.

 

* Paulo Henrique de Almeida Rodrigues é diretor do Cebes.