Lucia Souto, Fernando Monti e Paulo Dantas analisam o perfil de Nelson Teich, novo ministro da Saúde
por Estêvão Bertoni em artigo originalmente escrito para o Nexo Jornal
A médica e presidenta do CEBES Lúcia Souto e os médicos Fernando Monti e Paulo Dantas analisam o perfil de Nelson Teich, que tomou posse em meio ao início de um quadro de colapso da saúde no país
Em meio a uma das mais graves crises sanitárias enfrentadas pelo país, o médico oncologista Nelson Teich tomou posse como ministro da Saúde na sexta-feira (17), numa cerimônia em que o presidente Jair Bolsonaro voltou a defender a reabertura do comércio e mais uma vez criticou os governadores pela adoção de medidas de isolamento social para conter o avanço do novo coronavírus.
Teich assumiu a vaga de Luiz Henrique Mandetta, demitido após ter conquistado popularidade e protagonismo ao defender as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde) na pandemia, o que contrariava o presidente. Preocupado com as consequências econômicas do isolamento, Bolsonaro tem saído às ruas e descumprindo recomendações de autoridades sanitárias.
O novo ministro, que já defendeu em artigos o isolamento social como a melhor forma de combater a epidemia da doença, afirmou, ao ser anunciado para o cargo, estar alinhado ao presidente. Ele fez sua carreira no setor privado, como consultor em gestão de saúde. Teich fundou um instituto dedicado a pesquisas sobre o câncer e já prestou consultoria para hospitais como o Albert Einstein, em São Paulo.
Durante a campanha presidencial de 2018, foi consultor informal da equipe de Bolsonaro. Chegou a ser cotado para o ministério no período de transição, mas perdeu a vaga para Mandetta.
Em suas primeiras falas, Teich manteve um discurso dúbio de defesa do presidente e, ao mesmo tempo, da ciência. Afirmou que irá acompanhar diariamente a evolução da covid-19 no país e trabalhar com estados e municípios na solução do problema, embora o representante do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) tenha sido barrado em sua cerimônia de posse no Palácio do Planalto.
O médico assume o cargo num cenário de início de colapso do sistema de saúde em estados como Amazonas e Ceará e com quadros dramáticos como o do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, que alcançou 100% de lotação de suas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva). Na sexta-feira (17), um mês após a confirmação da primeira morte pela doença no país, o Brasil registrou 2.141 vítimas e 33.682 casos de contaminação.
O Nexo perguntou a três médicos o que esperar do novo ministro da Saúde nesse cenário de crise sanitária.
‘Seus méritos não estão ligados à função pública’
Fernando Monti, doutor em saúde coletiva, é ex-secretário municipal de Saúde de Bauru (SP) e ex-presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo
“O ministro vai ter muita dificuldade em vários sentidos. Mas vou falar de uma bastante objetiva, olhando especificamente essa questão da trajetória dele, que é o desconhecimento da máquina pública. A máquina pública tem características muito próprias. Temos um sistema de saúde público, o SUS, que é muito complexo. O fato de ser interfederativo dá a ele uma grande complexidade. Eu entendo que essa vai ser uma grande dificuldade para o novo ministro. Ele não conhece o local aonde está chegando. É uma pessoa que parece ter sido bem-sucedida na área privada, na área de consultoria, de inovação. Os méritos dele não estão muito ligados à função pública.
Nós nunca vivemos uma situação dessa [pandemia do novo coronavírus]. Você está no meio de uma situação sanitária de imensa gravidade e aí troca o comando. O problema não é só que vai trocar o ministro. Pelo que estou sentindo, e não sei se vai ser isso, vai trocar equipes dentro do ministério. E trocar equipes é uma coisa muito grave.
Ainda é cedo para falar do discurso dele, mas acho que há mais clareza na fala dele quanto ao alinhamento ao presidente do que clareza quanto à obediência e ao respeito às medidas técnicas. Essa é a sensação que dá, em princípio. Nós estamos amparados, neste momento, e acho que quem vai segurar essa onda são os governadores.
O isolamento social é difícil para as pessoas, para as famílias. Ninguém está desprezando o quanto tem de dificuldade nesse cenário. Mas entendo que é totalmente necessário se fazer isso. Na medida que o tempo vai passando, vai ficando cada vez mais difícil as pessoas obedecerem, mesmo com orientações duras, objetivas, muito diretas. O problema de determinar uma flexibilização gradativa é que, ao primeiro sinal de vacilo, você desmonta as medidas de combate ao vírus. Tem uma sinalização simbólica que pode ser muito negativa na fala do novo ministro.
Eu fico imaginando: a questão do isolamento social foi o núcleo do conflito entre o presidente e o ministro anterior. Eu acredito que o presidente conversou sobre isso com ele [Teich] e a gente sabe qual é o pensamento do presidente. Eu temo muito. Eu temo que, no momento mais importante, mais crítico, a gente relaxe. E aí a gente vai pôr a perder inclusive o que a gente fez até aqui. Acredito que não chegamos ao topo da curva. Já tem dados de que a situação vai ficar dramática. Em algumas capitais as UTIs estão ficando lotadas. Há dados que mostram que a situação está se agravando. E aí fazer algum tipo de relaxamento exatamente no momento de agravamento é muito preocupante.
Espero estar errado, desejo sorte ao ministro, espero que ele seja bem-sucedido e que respeite as recomendações técnicas mais relevantes. Para todo mundo está tendo impacto econômico. Por que os outros países fariam isso se é uma coisa desnecessária? É porque é necessário. Nós estamos vivendo um paradoxo. Quanto mais funciona a medida, mais parece desnecessária. Nesses tempos anteriores, as pessoas que tinham uma tendência a apoiar o relaxamento das medidas diziam assim: “Mas onde estão os casos? Cadê as evidências?”
A impressão é que não está acontecendo nada. Mas não estar acontecendo nada é a virtude do processo que a gente está vivendo. A hora que as pessoas começarem a ter pessoas próximas, ter conhecidos passando pelo problema da doença, eventualmente manifestando casos graves, eventualmente tendo óbitos, a hora que a gente perceber isso como uma situação grave, será tarde demais.”
‘Caminhamos para uma catástrofe social’
Lucia Souto, médica sanitarista e presidenta do CEBES
“Há uma apreensão com a mudança no Ministério da Saúde. Ele [Teich] é uma pessoa que não teve nenhum convívio com a medicina pública, com a saúde pública. Tem uma formação e uma história toda vinculada à medicina privada. Sem querer prejulgar, porque pode ser que ele surpreenda, mas há um histórico que nos faz ter uma certa precaução. Nós estamos vivendo talvez a maior catástrofe, sem precedentes na história recente da humanidade, porque é uma crise sanitária, que no nosso caso é mais grave ainda do ponto de vista econômico e social. E tem ainda essa crise política.
O contexto que fez o Mandetta sair para a entrada do novo ministro já é preocupante em si, porque havia uma dissonância entre ele e o presidente. Nessa dimensão sanitária da crise, o mundo inteiro estava colocando a importância do isolamento social, que é irrefutável nesse momento. E isso já estava sendo quebrado, porque o próprio ministro anterior falava uma coisa e o presidente, outra. Hoje mesmo o presidente saiu abraçando e cumprimentando todo mundo. Ele não tem equilíbrio. Neste momento, o Brasil precisa de uma coisa equilibrada, de uma unidade em torno do isolamento social. Essa é a primeira questão. O Brasil precisa estar unido em torno disso.
Segundo, é importante que a gente possa, ainda nessa dimensão sanitária, tomar medidas urgentes de proteção dos profissionais da saúde. Em vários estados, a gente está recebendo denúncias, e elas já são bem notórias, de que os profissionais de saúde estão trabalhando em condições precárias. Em alguns lugares, como na cidade do Rio de Janeiro, precárias ao ponto de os profissionais não receberem salários. Isso é uma questão que deveria estar sendo providenciada, o país já deveria até, com uma determinação da própria Presidência da República, estar fabricando equipamentos de proteção individual, ter uma reconversão da indústria, ter uma voz de comando para que os respiradores fossem fabricados.
Nós sabemos que essa doença tem um componente de agravamento rápido do quadro clínico do paciente. Isso requer leitos de cuidados intensivos, respiradores e profissionais. Há, em várias regiões do país, carência desses profissionais e desses respiradores. A gente viu ontem a informação de que o governador do Maranhão teve que fazer um verdadeiro malabarismo para poder importar os respiradores da China, porque o governo federal estava impedindo esse processo. Em vez de dar um comando de harmonia entre as três esferas de governo, está um desentendimento generalizado. É nesse contexto que esse ministro entra.
Outro ponto ligado à questão econômica e social mas também à do distanciamento social é que o governo está com uma lentidão enorme para liberar a renda básica que já foi aprovada no Congresso. Cada hora é uma dificuldade a mais, expondo as pessoas a ter que fazer a regularização do CPF com filas monumentais Brasil afora. Uma aglomeração provocada por uma inépcia do governo em criar mecanismo que não exponham a população a esse risco.
Tem exemplos de vários países que tentaram fazer isso e não deu certo. Teve a Inglaterra, onde o próprio primeiro-ministro acabou sendo internado. Aqui na América Latina a gente viu a atitude exemplar do governo da Argentina que realmente está fazendo medidas de proteção social robustas para os trabalhadores, para as pessoas, para que elas possam ter condições de praticar o isolamento social. Se elas não têm condições, você expõe essas pessoas a filas gigantescas para poder ter esse acesso? Não usa as plataformas de tecnologia social que já existem para poder chegar esse dinheiro às pessoas? A única coisa que chegou rápido foi o dinheiro para os bancos. O país, com essa desigualdade monumental, onde as periferias já começaram a ter uma explosão de casos, sem condições de higiene, você coloca as pessoas numa posição de estratégia de sobrevivência: ou você se expõe para morrer de coronavírus ou então está arriscado a morrer de fome. É esse o dilema perverso que está colocado.
É um contexto que não é fácil. A gente está com esperança, mas com o pé no chão, porque o Brasil tem o SUS (Sistema Único de Saúde). Nós estamos propondo, no caso do SUS, uma verba emergencial de R$ 42,5 bilhões que tem que entrar logo. Você está vendo o que está acontecendo em Manaus: já tem corpos na mesma enfermaria onde estão os pacientes. Nós estamos caminhando a passos largos para uma catástrofe social. E, nesse contexto, a mudança de comando do Ministério da Saúde é um dado que preocupa. Estamos numa verdadeira situação emergencial com uma mudança no comando nessa hora. E não é uma pessoa que tem essa experiência necessária. Não vamos torcer para que dê errado, mas há uma preocupação pelo perfil do profissional.
Há uma falta de diálogo do governo federal com os governadores e, já na posse do ministro, o representante dos secretários estaduais de saúde foi barrado. Isso é um problema grave nesse momento. Os governadores estão tendo uma atitude importante, é um contraponto decisivo nesse momento, mas têm que ter recursos para os seus estados. E as medidas para isso também estão confusas. Há um grande estado de confusão neste momento, que não é bom porque não une o país, não une todas as forças que nós temos disponíveis para enfrentar o coronavírus, e a coisa vai cada vez se acelerando mais.
A fala do novo ministro tem um tom de ambiguidade que é até compreensível, digamos assim. O presidente hoje mesmo depois da posse saiu para cumprimentar todo mundo. A própria posse foi um festival de contágios. Ninguém tinha proteção, não havia distanciamento. Já é preocupante porque parece que não leva a sério o momento em que gente está vivendo. A fala dele tem uma ambiguidade que pode ser até compreendida, mas pode ser algo que não necessitamos neste momento. É um momento de aguardar. Vamos ver como ele vai se comportar no cargo.”
‘Uma atitude perigosa para o momento atual’
Paulo Dantas, médico pediatra, foi o primeiro presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde no fim dos anos 1980
“Não posso esperar coisas positivas da troca de ministro, principalmente em relação ao desenvolvimento do SUS e, especialmente, neste momento de grave situação com a pandemia do coronavírus. Por que afirmo isso de maneira tão contundente? Porque sempre abro a possibilidade de qualquer pessoa ter um bom desempenho. O ministro recém-nomeado substitui um ministro que vinha tomando atitudes corretas, ouvindo os secretários municipais e estaduais de saúde, a comunidade científica, seguindo as orientações da OMS [Organização Mundial de Saúde]. E, efetivamente, ainda enfrentando com dificuldades uma postura inadequada do presidente da República discordando de todas essas orientações. Uma pessoa que assume hoje o Ministério da Saúde, tendo conhecimento desses fatos, evidentemente apresenta uma tendência a ter uma afinidade com a postura do presidente da República, que rigorosamente é condenável.
O outro aspecto é a origem. Não ter uma trajetória de servidor público, não ter uma trajetória de participação na construção ou algum período de gestão, seja em município, seja em estado, no serviço público, mostra um total desconhecimento do processo de funcionamento do SUS. Isso ficou claro nos pronunciamentos iniciais ao tomar posse. Ele não apresenta no discurso sinal de conhecimento de como é o procedimento, o fluxo, a participação tripartite das decisões e tomadas de deliberações, seja na Comissão Intergestores Tripartite, no Conselho Nacional de Saúde, e isso me parece um risco enorme nesse momento.
Alguém chegar e assumir uma função tão séria e importante com o desconhecimento total do funcionamento do SUS? Eu gostaria que minha expectativa não fosse ruim. A realidade impõe para nós uma situação de gravidade extrema, tendências que podem levar ao colapso do próprio sistema se essas medidas de isolamento social não acontecerem de maneira mais determinada, com um convencimento maior da população, com um comando que indique isso e não vacile sobre essa orientação. Na medida em que um ministro na sua posse já diz que ainda vai estudar, ainda vai ver, não sabe como vai ser. Isso mostra uma atitude oscilatória e perigosa para o momento atual.
As estruturas organizativas de secretários de saúde, que é o Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], os Cosems [Conselho de Secretários Municipais de Saúde] e o Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], são fundamentais e decisivos para a formulação das políticas e ao mesmo tempo precisa haver os acordos consensuais. Se o ministro assume sequer sem essa noção, com certeza vai se impactar. O Conass e o Conasems são forças organizativas muito fortes e vão exigir o cumprimento das leis. E isso implica em negociações e pactuações nas três esferas de governo.
Se o atual ministro acha que pode tomar decisões de forma monocrática e isolada vai sofrer ações judiciais imediatas. Essa situação de barrar os representantes desses órgãos na posse é muito ruim especialmente quando estamos diante de uma situação tão grave. Ou ele vai aprender a lição do que é o SUS de maneira rápida e perceber que vai ter que conversar, e conversar muito com os secretários municipais e estaduais de saúde, que são exatamente os órgãos representativos das gestões estaduais e municipais, ou na verdade vai ficar criando só problemas. E criando problemas, com certeza com a força dos secretários, os conselhos vão agir e mostrar ao ministro que ele tem que pegar a Constituição Federal e as leis orgânicas de saúde, tirar uma quarentena para fazer a leitura, e tentar aprender. Porque senão poderá ser enquadrado por improbidade administrativa.
O presidente continua a assumir discordância com o eixo principal do combate ao coronavírus, que é o isolamento social. Ele [Teich] vai entrar logo em colisão com o presidente sabendo qual resultado será? Ele [Teich] não tem uma base de sustentação política, diferentemente do Mandetta, que tinha experiência política, mandato parlamentares, tinha uma capacidade de articulação com o Congresso. Evidentemente que ele não terá sequer a possibilidade de se sustentar o tempo que o Mandetta conseguiu se sustentar e inclusive ganhar apoios. A tendência é de aceitação das posturas e tentar ajustar o discurso do Bolsonaro para uma situação de não parecer ser somente um capacho. A realidade poderá ser dramática, pois a evolução da doença é vivermos momentos mais complexos e difíceis. Isso o Mandetta já vinha dizendo. Nessas circunstâncias, ele [Teich] receberá toda uma carga negativa sobre ele. E poderá chegar a um momento em que ou vai renunciar ou vai assumir com toda a carga as ordens do Bolsonaro que são contra todos os conceitos de ciência e indicativos sanitários adequados para o enfrentamento da epidemia.”