Temporão: ‘Não percebo no Congresso compromisso com o SUS’
Por David Carvalho/ Rede Brasil Atual
Ex-ministro considera falso argumento de que má gestão é a principal questão do sistema público de saúde e afirma que tentativa de asfixia decorre de subfinanciamento, um dos problemas pendentes.
Histórico militante da reforma sanitária brasileira, professor da Fiocruz e ex-ministro da Saúde (2007-2010), José Gomes Temporão afirma que a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) passa pela política e pela participação popular nos rumos do país. Ele explica por que a criação do sistema público brasileiro significou uma revolução para o povo brasileiro, aponta as principais conquistas e desafios, e fala sobre os maiores inimigos da saúde pública, hoje, no Brasil.
Para Temporão, apesar dos inúmeros avanços, resta ainda um longo caminho a ser trilhado para a implementação do SUS conforme pensado por seus idealizadores e como apresentado na Constituição. Entre as questões, o que considera um falso argumento a respeito de má gestão e a verdadeira questão da falta de recursos, que, a depender do Congresso, parece que seguirá sendo um problema crônico do sistema.
Quando Temporão comandava o Ministério da Saúde, durante o governo Lula, o Senado vetou a continuidade da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o que acabou tirando R$ 40 bilhões ao ano do setor.
Padrão Brasil – Em recente palestra o senhor afirmou que sem o SUS, certamente, o Brasil viveria uma barbárie social. Por quê?
O termo vem de ação cruel, de bárbaros: abandonar o povo à própria sorte em relação aos cuidados e políticas de saúde. A ausência do SUS seria a negação da saúde como um direito de cidadania e o abandono de milhões de brasileiros à própria sorte no caso de doença ou sofrimento, ou submetê-los à proteção da caridade ou da filantropia, que era exatamente a situação anterior a 1988. Isso seria a negação do processo civilizatório de que nos fala Norbert Elias e que Sergio Arouca reafirmou.
Padrão Brasil – Em outubro o SUS completou 25 anos. Nesse período quais conquistas você considera as mais importantes?
São inúmeras e impossível sumarizá-las neste espaço. Saímos de um modelo centralizado e autoritário para uma radical descentralização com participação da sociedade no controle das políticas. Ampliou-se muito a cobertura e o acesso a procedimentos dos mais simples (vacinação) aos mais complexos (transplantes). O impacto desta política sobre indicadores como expectativa de vida ao nascer, mortalidade infantil, entre outros foi brutal.
Padrão Brasil – E os principais desafios e problemas a serem enfrentados para o Brasil concretizar a implementação do SUS como está na Constituição?
Inúmeros. Da conquista definitiva da sustentabilidade econômico-financeira, passando pela busca de um grau maior de eficiência e qualidade, até a implementação de políticas intersetoriais e transversais para atuar sobre os determinantes sociais da saúde. Resta ainda um longo caminho.
Padrão Brasil – O SUS nunca esteve no patamar de política pública prioritária, como estão as questões econômicas. Nesse período, tivemos governos com ideários neoliberal e desenvolvimentista. Se a alternância política e ideológica não recolocou a saúde no centro da agenda pública, quem poderá fazê-lo?
O processo político-ideológico de construção de uma consciência política onde coletivamente enquanto nação possamos compreender o valor do SUS como bem, patrimônio do povo e da nação e política insubstituível de conquista de cidadania e de redução de desigualdades. E apenas no momento em que do mandatário maior da nação ao brasileiro mais humilde todos tenham acesso ao mesmo padrão de atenção no tempo e no espaço, teremos alcançado esse patamar.
Padrão Brasil – O SUS que temos hoje corresponde a quanto das suas expectativas da época da militância, nas décadas de 70 e 80?
Temos que olhar essa construção como um processo político que vai atravessar gerações. Não há frustração ou desânimo. Avançamos, mas temos que avançar mais.
Padrão Brasil – No Brasil, é crescente o número de cidadãos que optam por planos privados porque não confiam no SUS. Ainda é possível acreditar e apostar num sistema público, universal, gratuito e de qualidade que atenda às necessidades dos brasileiros?
Sim! É possível desde que esse processo político maior que se coloca no campo da consciência sanitária se fortaleça. Hoje, infelizmente são inúmeros os vetores de fortalecimento do mercado privado e de fragilização do SUS implementados por governos de vários matizes ideológicos.
Padrão Brasil – No Brasil, o subfinanciamento e decisões políticas e econômicas que fortalecem e viabilizam o mercado privado constituem barreiras para a consolidação da saúde pública universal. Além desses, quais são, hoje, os principais inimigos do SUS?
Os inimigos são muitos nem sempre fáceis de detectar precocemente. A denominada judicialização da saúde é um deles, mas a medicalização que força a incorporação de tecnologias de modo acrítico, a defesa ortodoxa de uma estrutura de Estado que já não dá conta dos desafios da gestão contemporânea, a visão arraigada (e equivocada) de que saúde se confunde com assistência médica, a manutenção de um “sistema de castas” para atender os mais ricos e poderosos no andar de cima e o povão no andar de baixo… estão aí como forte obstáculos.
Padrão Brasil – Uma proposta de iniciativa popular para destinar 10% das receitas brutas da União para a saúde pública foi derrotada no Congresso. Até quando a sociedade brasileira vai conviver com um sistema de saúde subfinanciado?
Esse é um dos sintomas do que considero grave patologia social: asfixiar o SUS financeiramente afirmando que o problema central do modelo seria a gestão inadequada dos recursos existentes. Não percebo hoje no Congresso Nacional nenhum compromisso maior com o SUS.