Saúde em Debate v.44 nº 126
Editorial
Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19: construindo uma autoridade sanitária democrática
Lucia Regina Florentino Souto1,2, Claudia Travassos1,2
1 Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (Cebes) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
2 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
A PANDEMIA DA COVID-19 ESTREMECEU ESTRUTURAS evidenciando desafios civilizatórios de grande magnitude. As várias dimensões disruptivas de uma crise sanitária, econômica, social, cultural, ambiental, ética e política sem precedentes expuseram o fracasso do projeto ultraneoliberal com sua agenda de aprofundamento das desigualdades, retirada de direitos, destruição do Estado com impactos profundas sobre a vida em suas diversas manifestações.
Nesse contexto, o Brasil vive a pandemia em um espetáculo de soberba e abandono, por parte do governo federal, de suas responsabilidades. No lugar de unir o País para enfrentar, à altura, a inédita situação de crise sanitária, o governo optou pelo acirramento de conflitos entre os entes federados, entre segmentos da sociedade, enfatizando um discurso de discórdia e negacionismo. A estratégia de comunicação contribuiu, assim, para disseminar confusão e impedir a tomada de decisões de proteção da vida e da saúde da população.
O discurso de desqualificação de medidas de mitigação preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – de distanciamento social, de uso de proteção individual, de rastreamento de casos, de ausência de uma política de comunicação, de desorganização dos cuidados – resultou em um quadro de catástrofe sanitária no País com a morte de quase 150 mil pessoas, muitas delas evitáveis, e com quase 5 milhões de casos. A adoção de medidas de proteção social, como a renda emergencial de R$ 600,00, só foi viabilizada pela ação do Legislativo.
Diante dessa calamidade, as entidades da saúde coletiva, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira Rede Unida (Rede Unida), a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), o Conselho Nacional de Saúde (CNS), somaram-se à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), constituindo a Frente pela Vida, realizando, em 9 de junho, a Marcha pela Vida, com a adesão de mais de 600 entidades e com a entrega de um manifesto em audiência pública de várias comissões do Congresso Nacional com a presença de inúmeras/os parlamentares. O Manifesto apontou pontos estratégicos, como a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e a revogação da Emenda Constitucional nº 95 (do teto dos gastos), a ação de acordo com as evidências científicas, a proteção do meio ambiente, as políticas robustas de proteção social e a defesa intransigente da Democracia.
Como desdobramento da Marcha pela Vida, as entidades da saúde coletiva integrantes da Frente pela Vida compreenderam ser sua responsabilidade interferir no curso da pandemia elaborando um documento com base na ciência e na mobilização social, o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-191, na perspectiva de afirmação de uma autoridade sanitária democrática. O Plano foi apresentado em 3 de julho em fórum virtual com a presença de inúmeras entidades da sociedade civil, Conselho Nacional de Secretários de Saúde e parlamentares.
O Plano é fruto de um planejamento participativo que reconhece a pandemia como um fenômeno complexo que exige ações em várias dimensões e nas suas interfaces com aporte do conhecimento científico, saberes técnicos, práticas e movimento social. Não é um problema apenas da Saúde, mas de todos os setores de governo, como dos vários segmentos da sociedade. É importante ressaltar que o Plano de Enfrentamento da Frente pela Vida, ao mesmo tempo que apresenta caminhos para controlar a pandemia, explicita a centralidade do Estado nesse processo.
Reafirma a responsabilidade do governo federal na formulação e condução de políticas emergenciais efetivas para proteger a população brasileira dos diversos efeitos evitáveis da pandemia e do Ministério da Saúde na função de coordenação de ações intra e intersetoriais de impacto sobre a saúde, crucial em um país caracterizado por sua dimensão continental, com diversidades socioculturais, econômicas e ambientais, em um contexto histórico de profundas desigualdades sociais.
Em oposição à sua responsabilidade de enfrentamento da pandemia, o governo federal mostrou-se omisso e alimentou crises sucessivas na saúde, a ponto de ter, nos três primeiros meses da pandemia, três ministros da saúde, sendo que o último, general das forças armadas, permaneceu como ministro interino por cerca de quatro meses. Sua posse ocorreu apenas recentemente, quando os parâmetros epidemiológicos demonstravam um quadro de grande descontrole na transmissão do vírus no País, desproporcionalmente distribuída nas populações indígenas nativas, pobres, negras e moradoras dos bairros de periferia das grandes cidades.
Em uma situação crônica de subfinanciamento, o SUS não consegue responder, em tempo hábil e com qualidade, às demandas de vigilância e de cuidado à saúde geradas pela Covid-19, ao mesmo tempo que atende aos demais problemas de saúde da população de modo integral, garantindo segurança dos pacientes e dos profissionais de saúde.
O Plano de Enfrentamento contém 70 recomendações, dirigidas às autoridades políticas e sanitárias, aos gestores do SUS e à sociedade. Dentre elas, destaca-se a vigilância à saúde a ser prioritariamente conduzida por equipes treinadas da rede de profissionais de Atenção Primária à Saúde, em articulação com as demais autoridades sanitárias. Medidas voltadas para a implementação de uma linha de cuidado à Covid-19, articulada à Rede de Atenção à Saúde, associadas à adoção de estratégias de mitigação dos danos sanitário e econômico, complementam as ações centrais de enfrentamento à pandemia.
Lamentavelmente, chegamos ao mês de outubro com a pandemia se arrastando no País em um cenário epidemiológico de manutenção de altas taxas de incidência e de mortalidade, apesar da variabilidade desses parâmetros entre estados e cidades. O Brasil encontra-se em uma situação de risco sanitário continuado, em particular, para a população vulnerabilizada, associado ao agravamento da crise econômica, com efeitos dramáticos sobre o mercado de trabalho. Uma situação que poderia ter sido evitada, considerando o potencial do SUS para dar respostas efetivas à emergência sanitária provocada pelo vírus Sars-CoV-2.
Para o enfrentamento da pandemia, é estratégico outro projeto de sociedade que supere a agenda devastadora do ultraneoliberalismo responsável pelo desfinanciamento criminoso do SUS. Nesse momento de encruzilhadas, reafirmamos nosso compromisso histórico com a Vida, com a Saúde e com a Democracia.
Saúde é Democracia!
EDITORIAL
Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19: construindo uma autoridade sanitária democrática | por Lucia Regina Florentino Souto, Claudia Travassos
ARTIGO ORIGINAL
A relação interfederativa e a integralidade no subsistema de saúde indígena: uma história fragmentada | por Nayara Scalco, Fernando Aith, Marilia Louvison
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ENSAIO
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ARTIGO DE OPINIÃO
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