Fátima Souza: ‘Atenção Primária à Saúde e o SUS, a cavalaria da privatização’
artigo de Fátima Sousa, Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais, Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília. Artigo originalmente publicado no site da autora
Há mais de quatro décadas o intitulado Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), vem disputando a universalidade do direito à saúde, oficializado com a Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Este, que nos seus 32 anos, vem edificando o acesso a todos os bens e serviços de saúde, nos 5.570 municípios do país, apesar dos seus desafios.
Desde o início do século XX[i], diversos foram os ciclos de tentativas à mudança do modo de organização dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS), por meio da Atenção Primaria à Saúde (APS), quase sempre limitados as ações seletivas, simplificadas, e denominadas por muitos de “medicina pobre para pobre”. Ciclo modificado com as Estratégias de Agentes Comunitários (1991) e Saúde da Família (1994), que ao longo de suas institucionalizações colocam-se como prioridade na coordenação da atenção à saúde e ordenação das Redes Integradas, tendo em sua base estruturante a Atenção Básica à Saúde (ABS)/(APS).
Muitas foram suas conquistas: redução das iniquidades em diversos territórios assistenciais vazios, desde o campo às cidades; ampliação do acesso de forma humanizada, acolhedora e vinculatória; diminuição dos principais agravos do mundo da pobreza, criação de emprego e geração de renda. Resultados registrados pelas renomadas instituições de pesquisa, pela gestão do SUS e referendado pela população, quando sente a satisfação de ser cuidada pelas equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF).
Não é surpresa o desfinanciamento dessas estratégias e de outras políticas públicas, que reafirmem os direitos de cidadania como um bem civilizatório, e o dever do Estado de prover, produzir, gerir e regular a distribuição das riquezas destinadas à proteção social, e não o atravessamento do mercantilismo do setor saúde.
Alguns ainda pedem explicações ao tomarem conhecimento da publicação do Decreto no 10.530, publicado em 27/10/2020, em sua edição 206, seção 1, página 3 e que “Dispõe sobre a qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.
A esse fato juntam-se tantos outros rumo à expansão privatista em curso do SUS. A repercussão? A conivência, indiferença, pior, o silêncio dos túmulos, ou vozes que, ao defendermos o SUS, somos considerados “alarmistas”. Para sair desse lugar comum é preciso falar à população as razões pelas quais os empresários do complexo médico-industrial cobiçam tanto o maior Sistema de Saúde do mundo, e, cotidianamente, operam para seu desmonte. Mais grave, orquestrado pelos palácios dos desgovernos.
Aqueles que editam a Emenda Constitucional (EC) 95/ 2016, cuja consequência é a perda de investimentos na ordem de R$ 22,5 bilhões, o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde. E mais, o valor investido por pessoa, que chegou a R$ 595 em 2014, passou a ser de R$ 555, em 2020.
Aqueles que autodeclaram desconhecer o SUS, passam a vendê-lo. Melhor, delegar sua negociação ao livre mercado que sempre almejou enriquecer às custas das doenças societárias e biológicas das pessoas.
Será que a história se replete? Foi na XIII Conferência Nacional de saúde, marco da construção dos valores, princípios e diretrizes do SUS, que eles se retiraram do plenário e nos provocou a encontrá-los no Congresso Nacional. Afinal, lá se encontravam e ainda se encontram, seus financiados, com raríssimas e honrosas exceções. Assim, o Centrão cravou naaorta, do recém-criado SUS, no artigo 199 da CF/88: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Em nome desse artigo, esquecem que sua participação no SUS deve ser regulada pelo Estado, omisso, é bem verdade, e de forma complementar, não suplementar.
A preferência é dada às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, as quais são isentas de pagar impostos. O § 3º veta a entrada no país de empresas de capital estrangeiro. O governo Dilma sanciona o artigo 143 da Medida Provisória 656/2014, abrindo o livre comércio. Uma festa para o Conselho de Administração da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), que viu na medida a permissão para a concentração de poucas empresas comprando serviços de laboratórios, radiologia, hospitais e formando grandes monopólios e, ao mesmo tempo, tentando criar, seguros, planos de saúde que não asseguram a integralidade e a qualidade do atendimento
Penso que a melhor pergunta é porque o Ministério da Saúde transferiu sua responsabilidade de financiar a APS, resolveu vendê-la para o Ministério da Economia, o todo poderoso (criado mediante a fusão dos ministérios da Fazenda, do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e parte do Ministério do Trabalho). Qual concepção de atenção primária está sendo anunciada pelo Ministério no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI?
Agora a APS, vira a menina dos olhos? Não, a porteira ja está escancarada, há anos. O anunciado “novo financiamento da APS” abriu alas para a Medida Provisória n. 890, que criou a Agência para o Desenvolvimento da APS (ADAPS), com atribuição de prestação direta da APS por meio da contratação de prestadores privados, entre outras medidas. Muitas são as vozes que bradam: “universalidade é coisa do século XX”, portanto “ultrapassada”.
Assim, repito, não há saída fora da política. Logo, passou da ora de reedificarmos os pilares de uma sociedade que defenda a vida acima dos lucros, que defenda um modelo de estado de bem-estar com garantias de direitos e não privilégios de mercados. Uma sociedade inclusiva, justa e solidária. Tarefa essa que não se faz, assistindo a banda passar, ou afirmando que a reforma previdenciária, trabalhista, administrativa, atinge somente a nova geração. Porque sabemos todas (os) que a política de ajustes fiscais expressas na Lei de Responsabilidade Fiscal, no Teto dos Gastos e na Regra de Ouro precisam ser revogadas, do contrário seguiremos assistindo a ampliação do Estado de mal-estar-social.
Esses males já conhecemos. Se não agirmos, seremos portadores de tantos outros vírus que vem desnudando as crises mais desumanas dessa nação, fruto de capitalismo perverso e desmedido em sua sede de enriquecimento às custas das dores e mortes da nossa gente.
É urgente não perdemos nenhuma oportunidade para reversão desse quadro, sendo ousados, criativos e comprometidos com um outro modelo de estado: firme, presente, responsivel e cuidador das expectativas, sonhos e esperanças de cada indivíduo, família e comunidade brasileira. Só assim evitaremos que a Atenção Primária à Saúde e o SUS entrem de vez na cavalaria da privatização.
[i] 1924, Geraldo de Paula Souza criou um Centro de Saúde, na tentativa de organizar as ações básicas de saúde.