Investimentos privados no SUS: erro ou maldade?
por Ligia Bahia, professora da UFRJ, e Mario Scheffer, professor da USP, em artigo originalmente publicado em O Globo
Brotam projetos de planos particulares sem garantias de atendimento
O decreto Nº 10.530 sobre investimentos privados para o SUS, originado no âmbito do Ministério da Economia, foi publicado no mesmo dia em que o país acumulou 158 mil óbitos por Covid-19 e um hospital federal pegou fogo no Rio. Permite que o ministério realize estudos para a inclusão das Unidades Básicas de Saúde (UBS) dentro do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI). A gritante assincronicidade entre objetivos governamentais e a real situação de saúde é razão de sobra para alertar para a intensificação das irresponsabilidades e erros na condução do controle da pandemia por parte do governo federal. Enquanto mais mortes ocorrem, e uma unidade hospitalar que estava internando pacientes infectados é destruída, autoridades governamentais em seus gabinetes priorizam negócios e não saúde.
Sequer o Ministério da Saúde foi consultado sobre a norma legal. Trata-se de um decreto que “cancela” a saúde no contexto de uma crise sanitária prolongada e ainda sem um horizonte visível de saída.
Uma crise sanitária que prejudicou a economia e continuará afetando. Não nos faltam exemplos, inclusive recentes de países europeus, sobre a importância da manutenção das medidas de vigilância. Inverter as prioridades entre saúde e economia revelou-se um grave equívoco. Diversos países que minimizaram a gravidade do problema da saúde rapidamente alteraram rumo e prumo de suas políticas públicas. Os que persistiram afirmando a dicotomia entre a geração de riquezas e as vidas humanas, como ocorreu nos EUA, apresentam elevadas taxas de casos e mortes.
No Brasil, ao contrário do que ocorre nos EUA (onde uma significativa parcela da população encontra-se desprovida de coberturas para a saúde), o SUS e seus profissionais conseguiram erguer um muro de contenção à pandemia. O SUS, um sistema público, gratuito e capilarizado, se mostrou imprescindível, uma rede de segurança, no contexto de intensificação das desigualdades. O hastag da pandemia é #e se não fosse o SUS?#.
Entretanto, há um processo nem sempre visível de expansão da privatização da saúde, que surfou no tsunami da pandemia. Entre março, início dos casos de Covid-19, e hoje os negócios na saúde prosperaram. Há um frenesi, querem diversificar, expandir fronteiras em direção aos “consumidores” pobres e miseráveis. Já existem ensaios de “novos modelos” de negócios baseados no uso de unidades básicas públicas como envoltório para empresas de telemedicina.
São “modelos de negócios” que pretendem ofertar à maioria da população cuidados ocasionais e sintomáticos. Todas as lições da pandemia foram desprezadas. Obesidade, hipertensão e diabetes são inputs para previsíveis outputs: aumento de prescrições de medicamentos, exames e consultas com profissionais de formação deficiente (os que se submetem a um regime de trabalho precário) via compra governamental de pacotes prontos de tecnologias de informação. Portanto, os estudos de alternativas e a estruturação de projetos incluídos no texto do projeto parecem ser apenas enfeite. Universidades e instituições públicas que realizam pesquisas sobre o tema não foram convocadas. Os indícios sugerem que o decreto com artigo único é apenas um respaldo legal para estimular investidores.
Temos um Ministério da Economia que dedica tempo e trabalho à privatização do SUS em um país às voltas com recessão, desemprego e redução de renda. E um Ministério da Saúde cujo ministro que ocupa o cargo declara apenas obedecer. Nessa sombra vicejam os projetos de planos privados sem garantias de atendimento e ainda a perspectiva de inclusão de copagamentos para o atendimento no SUS. Em vez da redução das desigualdades na saúde, aposta-se na fragmentação dos cuidados e na segmentação das demandas. Quem for rico terá médico de forma presencial, continuará estabelecendo relações médico-paciente adequadas, os demais serão atendidos remotamente por profissionais diferentes. Uma tentativa de aumentar os ganhos dos fundos de investimento às custas do alargamento das disparidades sociais.