Com o SUS e sem Bolsonaro. Essa ameaça pela qual estamos todos passando tem um contraponto: a vontade de viver. Entrevista com Lucia Souto.
Entrevista com a presidenta do Cebes Lucia Souto realizada por Leonardo Almeida da Silva, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT-Cáceres) e Membro do Conselho Editorial Alice News (Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra) para o portal Alice News
Médica sanitarista, doutora em Saúde Pública pela Fiocruz e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Lucia Souto falou com exclusividade ao ALICE NEWS sobre as ausências e as emergências da pandemia da Covid-19 no Brasil. Medidas sanitárias assertivas, fortalecimento do SUS e das políticas de bem-estar social e o impedimento de Bolsonaro foram o eixo da conversa. Confira a entrevista:
A atual pandemia da Covid-19 é um acontecimento de dimensões globais, contudo no Brasil ela tem sido mais aprofundada, mais letal e mais contagiosa em vários aspectos. Na sua visão, quais são os ingredientes políticos que agravam esta conjuntura trágica colocada hoje para o nosso país?
De fato, esta pandemia, é um fenômeno global e muito complexo e que trouxe uma crise sem precedentes para todos os países ao redor do mundo. Além de ser uma crise sanitária é também econômica, política, cultural, ambiental, enfim, envolve todas as dimensões contidas em um fenômeno complexo que é uma pandemia. Tendo passado mais de um ano do início desta pandemia – dado que os primeiros casos no mundo foram confirmados em dezembro de 2019 e aqui no Brasil entre janeiro e fevereiro de 2020 – ainda continua a gestão crítica dessa crise por parte do governo brasileiro.
Já está, inclusive, muito bem documentada uma aposta errática, mas ao mesmo tempo premeditada – há um importante trabalho da Professora e Pesquisadora Deisy Ventura da USP nesse sentido – que mostra atos, portarias e uma série de ações equivocadas do governo. E como era essa “estratégia” do governo? Deixar o vírus solto e contaminar toda a população de suscetíveis, para a partir desta infecção descontrolada de uma grande parcela da população se alcançar a barreira da imunidade coletiva, para a qual usam o termo “imunidade de rebanho”, contudo, nós da Saúde Pública preferimos o termo imunidade coletiva, que é o que ocorre quando um número muito significativo de pessoas já infectadas gera uma “barreira” para o vírus e para novas infecções. Entretanto, o que afirmo é que essa é uma estratégia completamente criminosa. Primeiramente porque, passado mais de um ano do início dessa suposta estratégia, está mais do que claro que isso não aconteceria, como de fato, não aconteceu, já que seria necessário milhões e milhões de mortes. Além disso, o que percebo é que essa estratégia não é simplesmente incompetência do governo brasileiro, mas sim um projeto.
Tudo que estamos passando hoje é consequência de um projeto que tem várias dimensões. Na dimensão sanitária, as consequências advêm dessa estratégia criminosa de se buscar atingir a imunidade coletiva. Uma outra dimensão deste projeto é o completo desfinanciamento do SUS. Apesar de no ano de 2020 ter sido aprovado o chamado Orçamento de Guerra que aportou para o SUS R$ 40 bilhões, para esse ano de 2021 o Sistema Único de Saúde está com o orçamento que tinha em 2017. Então, a partir da EC 95/2016 o SUS vem sendo não apenas subfinanciado, mas desfinanciado e com isso já perdeu R$ 22,5 bilhões desde 2018. E em 2021 o SUS perderá o que foi aportado para 2020, mesmo que ainda estejamos vivendo de maneira mais agravada tudo o que passamos no ano passado.
Então, além desta estratégia equivocada da busca pela imunidade coletiva, da qual Manaus é a maior prova deste desastre completo, dada a letalidade altíssima que o vírus alcançou, há uma estratégia que muitos países executaram e com êxito – ainda sem a perspectiva da vacina – que era o rastreamento e a busca ativa de casos, o que poderia ter sido feito pelo SUS através Estratégia de Saúde da Família detectando e isolando as pessoas infectadas e bloqueando a propagação do vírus no território, algo que cidades como Niterói/RJ e Araraquara/SP tentaram, de algum modo, realizar. Daí nós trataríamos desta pandemia a partir de uma perspectiva de Saúde Pública e não apenas em uma dimensão clínica individual – o que só faz crescer a demanda a ponto de colapsar o sistema de saúde, porque assim precisamos cada vez mais leitos de UTI’s, hospitais etc. – contudo estas possibilidades já vinham sendo desestruturadas desde o fim do programa Mais Médicos.
O que afirmo que essa pandemia tem demonstrado, em termos gerais, é o fracasso de um projeto ultraneoliberal de sociedade. E o Brasil é uma demonstração ímpar disso, porque temos comprovadamente, a pior gestão da pandemia no mundo. Um indicador disso é o fato de termos 2,7% da população mundial e 30% dos óbitos neste momento, o que faz do Brasil um grande problema para si próprio, porque é como se o país fosse hoje um grande campo de concentração e de extermínio com uma mortandade em escala industrial. Mesmo nas UTI’s nós temos no Brasil uma taxa de mortalidade muito maior do que em outros países e, como disse, tudo isso é fruto de uma estratégia equivocada. E nosso grande dilema é que agora não dá para agirmos mais como se a pandemia estivesse no início, porém se tivéssemos feito essa busca ativa de casos utilizando a Atenção Básica do SUS, é certo que a esmagadora maioria destas mortes teria sido evitadas.
Desde o início da pandemia vimos na grande mídia, nas lives e nos meios de comunicação em geral, médicos e especialistas apontando para alguns destes pontos que você destacou, como o equívoco que seria a busca pela “imunidade de rebanho” e a falta de testes que levou a essa ineficácia na detecção e na busca ativa de casos. Nesse sentido, por que não vimos na mesma proporção, além do alerta, ações institucionais de entidades médicas brasileiras?
As entidades médicas corporativas foram um desastre nessa pandemia. Neste sentido, precisamos separar as entidades corporativas, como o Conselho Federal de Medicina e vários Conselhos Regionais de Medicina, das entidades da Saúde Coletiva brasileira, como o CEBES, a ABRASCO, a Rede Unida, a Sociedade Brasileira de Bioética e mais inúmeras entidades e conselhos, como o Conselho Nacional de Saúde que tem médicos sanitaristas, infectologistas, epidemiologistas e que nunca se omitiram. Ainda em março do ano passado nós constituímos a Frente pela Vida e em maio realizamos uma marcha virtual a Brasília e fizemos um Manifesto que já colocava alguns eixos: primeiro, contextualizando que a pandemia era um momento crítico sem precedente que a humanidade estava vivendo; segundo, que seria necessário trabalhar baseado na ciência; terceiro, que era necessária a valorização do SUS porque esse seria o nosso principal instrumento de combate a essa pandemia; quarto, a compreensão da estreita relação dessa pandemia com a questão ambiental, porque já está documentado que tal qual o SARS e a MERS, não foi diferente com esse Coronavírus: estes são resultado da quebra de ecossistemas; e um quinto ponto que colocávamos neste manifesto era a democracia, porque sem participação e sem alinhamento entre sociedade civil e governos não seria possível fazer o enfrentamento adequado daquilo que já identificávamos que seria a maior crise sanitária da história.
Após isso lançamos o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19, muito pormenorizado e que foi divulgado por todas as nossas redes e que também entregamos ao Congresso Nacional em uma Audiência Pública com a Comissão Externa da Covid-19 da Câmara e do Senado e o entregamos também para o Ministério da Saúde, o qual foi recebido pela sua Secretaria Executiva, mas que nada manifestou a respeito desse Plano. No dia 15 de dezembro de 2020 lançamos uma campanha chamada O Brasil precisa do SUS, porque no dia 16/12 seria votado o Orçamento de 2021 e já sabíamos que aquele processo de desfinanciamento do SUS seria retomado. Essa foi a primeira vez que sentimos que o SUS havia ganho a confiança da população brasileira: nós vimos como o SUS estava se tornando um instrumento crítico de luta por um projeto de bem-estar da sociedade brasileira. O SUS era a síntese da importância da presença do Estado na vida e no dia-a-dia da população brasileira.
A esta altura já trabalhávamos com a possibilidade da vacina que, registre-se, foi um dos trabalhos mais impressionantes da ciência global com a colaboração de inúmeros institutos de pesquisa do mundo inteiro para desenvolver imunizantes em tempo recorde para essa pandemia. Aqui no Brasil, Fiocruz e Butantan, que são instituições centenárias, desde junho de 2020 já estavam trabalhando com levantamentos e busca pela vacina. Sem essas duas instituições não teríamos vacinação no Brasil hoje pela Astrazeneca nem pela Coronavac. Tudo isso mostra o potencial enorme que o Brasil tinha e tem para o enfrentamento desta pandemia.
De um modo geral eu diria que os profissionais de saúde em sua esmagadora maioria estavam na Frente pela Vida. Mas em contraste a isso os segmentos de uma elite médica muito pressionada pela indústria farmacêutica, mas não só, pois aí entra um outro componente premeditado deste governo que era questão do “kit-Covid” que inventaram: Cloroquina, Ivermectina e outros medicamentos que a OMS, além de vários estudos, já haviam alertado e indicado que não tem efeito comprovado. Mesmo assim, aqui no Brasil o presidente da república virou um garoto-propaganda da Cloroquina, o que é uma expressão do negacionismo levado ao extremo. E aqui sim, é importante dizer: fez isso referendado pelo Conselho Federal de Medicina que usou um argumento falacioso de dizer que o médico tem a liberdade de fazer a receita que bem quiser, o que não é verdadeiro, dado que o médico não pode receitar aquilo que não tem comprovação científica. Isso não é medicina: isso é charlatanismo.
Tudo isso gerou uma grande confusão na população brasileira. Essa semana Bolsonaro foi à cidade de Chapecó/SC, onde foi feito um lockdown rigoroso e que diminuiu o número de casos de forma bastante expressiva. Contudo, como o prefeito é bolsonarista, o presidente foi lá para dizer que este impacto positivo teria sido fruto do tal “kit-Covid” e não do distanciamento social. Ou seja, mais de um ano depois e Bolsonaro ainda insiste com este kit-Covid que não tem eficiência alguma e com o país batendo tristes recordes diários com mais de 4 mil mortes e um total de mais de 320 mil óbitos que poderiam estar sendo evitados com medidas corretas.
Entretanto, os profissionais médicos que tem apoiado este comportamento precisarão ser responsabilizados, pois já há casos comprovados de pessoas na fila para transplante de fígado, dado o uso abusivo da Ivermectina que tem uma toxicidade muito elevada.
Além disso, o governo Bolsonaro desdenha da vacina desde o ano passado e se associou de modo subalterno à narrativa do então presidente Trump dos Estados Unidos, o que fez com que o Brasil se afastasse de organismos multilaterais que estavam desenvolvendo um consórcio global para vacinas, o Covax Facility, que distribuiria vacinas conforme a necessidade de cada país. Essa foi uma outra frente em que também fracassamos, porque a corrida pela vacina é muito grande, já que até a Europa está tendo problemas com a velocidade da vacinação.
Então, esta situação do Brasil é um projeto. Ela foi construída. E nem o Brasil e nem outros países sairão da situação colocada pela pandemia sem um poderoso apoio econômico às suas sociedades, aos seus cidadãos, que é o que os países do centro do capitalismo estão fazendo, como é o caso dos Estados Unidos. Nós defendemos um Auxílio de, pelo menos, R$600,00 até o fim da pandemia, só que agora foi aprovado um Auxílio Emergencial que vai de R$150,00 a R$350,00 e isso não vai ser suficiente, porque o Brasil já voltou para o Mapa da Fome e os indicadores sociais todos regrediram. Este governo não deixa o SUS trabalhar na sua dimensão específica, porque amarra, impede toda a inteligência médica sanitária e epidemiológica que nós temos no país. Além disso, dificulta ao máximo a possibilidade de as pessoas fazerem o distanciamento social ou o lockdown por conta das medidas de proteção social que não são efetivadas. Exemplos de países como o Vietnã, a Nova Zelândia, a Alemanha e muitos outros tiveram sucesso com o balanceamento entre esse dispositivos: o lockdown e a ampliação da capacidade de vacinação. Deste modo, vários países estão conseguindo atravessar essa crise, ao passo que o Brasil, por outro lado, tem a pior gestão do mundo na pandemia, porque erramos na dimensão sanitária e a visão neoliberal do governo não quer e não permite pacificar a sociedade brasileira.
A Frente pela Vida tem diálogo com o Fórum Nacional de Governadores e estamos todo o tempo propondo medidas. Uma delas é uma coordenação nacional com técnicos, com cientistas, com médicos, com representantes políticos para termos uma otimização de todas as medidas e para fazer aquilo que é a alma do SUS: agir através do pacto federativo em uma cooperação entre o governo federal e governos estaduais e municipais, porque o que temos hoje são medidas sem coordenação e sem alinhamento implementadas sem orientação de um critério maior, por parte de cada prefeito, de cada governante. E esse é o pior cenário que nós poderíamos ter.
Conforme o calendário eleitoral brasileiro, um próximo governo federal só se inicia em janeiro de 2023. Em termos da dimensão política interna, podemos sair desse quadro com o atual governo, através da ação dos outros poderes e entes federados? Se estamos neste quadro caótico por conta das ações ou da falta de ações do governo federal, existe saída para essa crise sem o impeachment? Além disso, você acha que podemos vislumbrar nos próximos meses pressões externas sobre essa letargia do governo brasileiro?
Eu vejo uma grande movimentação na sociedade brasileira, porque toda essa situação catastrófica não é impune, porque todos estão percebendo que estamos em uma situação crítica que irá se agravar ainda mais. Infelizmente vamos ter um número ainda maior de mortes e de casos no mês de abril, enfim, há uma escalada na catástrofe sanitária.
Na questão interna há algumas variáveis que precisamos observar. E uma delas é o “efeito Lula”, pois desde o dia em que houve a possibilidade de ele recuperar seus direitos políticos e o discurso que fez posteriormente no dia 10 de março chacoalhou o tabuleiro político de maneira significativa. E como um grande estadista reconhecido mundialmente ele já fez também sinalizações externas – dado que o país não tem hoje um presidente, mas um genocida à frente do Brasil – então as pessoas começaram a perceber que há oposição, que há possibilidades. Me foi relatado que jornalistas jovens presentes no Sindicato dos Metalúrgicos no discurso do dia 10 de março se emocionaram com o discurso de Lula porque não o conheciam da época em que foi presidente, até porque o Lula foi cancelado da vida pública brasileira. E, deste modo, entendo que esse cancelamento nos conduziu a essa situação, de modo que este retorno dele já chacoalhou o tabuleiro.
Eu penso que essa ameaça pela qual estamos todos passando tem um contraponto: a vontade de viver. Prova disso é que nós ganhamos a guerra pela vacina, porque hoje a esmagadora maioria da população quer se vacinar, a nossa grande aspiração como sociedade hoje é vacinar, vacinar e vacinar. E é muito emocionante vermos milhões de pessoas se vacinando com um papelzinho na mão e dizendo “Viva o SUS”! Então essa emoção que toma conta de cada um quando é vacinado demonstra que as pessoas estão dispostas a viver em paz. O Brasil quer ser pacificado, nossa sociedade não aguenta mais tanto ódio.
Então há internamente esse conjunto de sentimentos: o de que devemos ter uma agenda de pacificação, uma agenda de enfrentamento da pandemia, de ter uma agenda de cuidados, uma agenda de bem-estar social. Tudo isso internamente, porque externamente hoje o Brasil é literalmente uma ameaça global, porque à medida que essa pandemia fica mais descontrolada há uma probabilidade imensa de se desenvolver aqui novas cepas que podem vir a driblar a vacina. Por bem, até agora isso não aconteceu, porque as vacinas que temos tem se mostrado eficazes. Porém, todos os que acompanham, como a Organização Mundial da Saúde, sabem que esse risco é muito grande. Então já há algum tipo de pressão externa nesse sentido. O Anthony Fauci, que é uma referência da epidemiologia e da saúde pública norte-americana afirmou que o Brasil precisa entrar em lockdown. Já há também manifestos de empresários e de economistas do campo da centro-direita colocando a necessidade do lockdown, como a Monica de Bolle e outros que são porta-vozes do chamado “mercado” e a própria OMS que está oferecendo técnicos para comandar a gestão da pandemia no Brasil.
Então, esses movimentos, tanto internos, quanto externos, tendem a crescer a meu ver. Particularmente não vejo a menor chance de termos o enfrentamento à altura da magnitude do problema com Bolsonaro. Nós temos que apoiar a CPI da Saúde e o impeachment. É preciso um movimento pelo impedimento de Bolsonaro, porque ele é um genocida, um criminoso. São inúmeros os crimes de responsabilidade que ele já cometeu. Nós, da Frente pela Vida, entraremos com uma Ação, junto com outras entidades, no STF, pedindo um lockdown de 21 dias com uma argumentação muito densa e fundamentada e também temos reunião com o presidente do Senado esta semana, o que significa que a sociedade civil está se movimentando. Enfim, vejo que tanto a sociedade civil quanto parte da classe política estão se movimentando e o “fator” ou o “efeito” Lula foi decisivo pra isso, tanto internamente quanto internacionalmente e não vejo perspectiva para enfrentarmos essa escalada da doença com Bolsonaro no comando.