Dia histórico contra o monopólio da Big Pharma no Brasil
matéria de por Maíra Mathias e Raquel Torres publicada originalmente no portal Outra Saúde
Senado aprova PL que permite quebra temporária de patentes na saúde. No Supremo, Dias Toffoli vota contra dispositivo que emperra genéricos
Por 55 votos a 19, o Senado aprovou ontem um projeto que permite a quebra temporária de patentes de vacinas contra a covid-19, além de testes diagnósticos e medicamentos como o remdesivir. Pelo texto, as licenças compulsórias poderão ser concedidas quando o titular da patente “não atender às necessidades de emergência nacional ou de interesse público” ou de estado de calamidade pública nacional. Só poderá desfrutar delas quem tiver “efetivo interesse e capacidade econômica para realizar a exploração”. Em contrapartida, os laboratórios titulares vão receber uma remuneração, cujo valor vai variar dependendo da licença, de sua duração, dos investimentos necessários à sua exploração, dos custos de produção e da venda do produto no mercado.
O governo federal pressionou contra a aprovação desde sempre, e a matéria sofreu várias mudanças desde a última vez que falamos dela, aqui. Os projetos de lei originais eram o 12/2021, do senador Paulo Paim (PT-RS) e o 1.171/2021, assinado por Otto Alencar (PSD/BA), Esperidião Amin (PP/SC) e Kátia Abreu (PP/TO). Eles foram apensados e o texto aprovado foi o do relator, senador Nelsinho Trad (PSD-MS).
No início, a proposta de Paim era dispensar o Brasil de cumprir durante a pandemia algumas exigências adotadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) no acordo TRIPS, que regula os direitos de propriedade intelectual no mundo. Esse era um dos problemas apontados pelo governo para tentar impedir a aprovação: o argumento era o de que nesse caso o acordo inteiro teria que ser denunciado, o que traria insegurança jurídica para outros detentores de patentes, mesmo fora da área da saúde. Trad retirou essa previsão, por considerar que “não é possível suspender por meio de legislação federal, ainda que parcialmente, partes de um tratado internacional ratificado pelo Brasil”.
Em vez disso, o substitutivo muda a Lei de Patentes, incrementando um artigo que já previa a possibilidade de licenciamento compulsório em caso de emergência nacional, mesmo respeitando o TRIPS. Como se sabe, a prerrogativa da licença compulsória, prevista na Lei de Patentes, já foi usada antes. Foi por meio dela que o governo Lula quebrou a patente do efavirenz, usado no tratamento da Aids.
Agora, ficou estabelecido que deve haver duas etapas para o processo. Primeiro, o poder público tem 30 dias para publicar a lista de patentes que poderão ser quebradas –, instituições de ensino e pesquisa, além de entidades da sociedade civil, deverão ser consultadas para a elaboração dessa lista, que deve ser constantemente atualizada. De início, ela deve conter necessariamente as patentes ou pedidos de patentes associados às vacinas contra a covid-19, os ingredientes ativos e insumos, além do medicamento remdesivir, Se os laboratórios titulares não repassarem sua tecnologia, ocorre a quebra de patentes propriamente dita – mas a decisão final cabe ao Executivo.
Ainda do outro lado
Mesmo depois de o projeto ter sido modificado para não mexer com o acordo TRIPS, o governo federal continuou dando o contra. “Quebrar patentes vai colocar o Brasil na mesma situação que nós vivemos nos anos 1980, em que a América Latina, o Brasil, eram países tidos como não cumpridores de acordos, moratórias. E isso prejudicou e muito a nossa história e o nosso desenvolvimento, o enriquecimento do nosso povo”, disse o vice-líder do governo Carlos Viana (PSD-MG), forçando a barra e afirmando que a proposta pode levar à “destruição”. Ele continua dizendo que a proposta “desrespeita acordos internacionais”.
A fala se alinha à da indústria. A CNI classificou como positiva a não-violação do TRIPS, mas avaliou que o projeto é “ineficaz” e não vai ajudar a aumentar a oferta de vacinas no país. “Até o momento, nenhum dos apoiadores do projeto explica quais são as dificuldades de utilizarmos a legislação vigente, que já permitiu o licenciamento compulsório em outras ocasiões. Os apoiadores do projeto também não indicam quais são as patentes que são obstáculos para que a indústria local produza as doses. Quais são as vacinas que pretendemos produzir com esse projeto? A aprovação do PL pode prejudicar as parcerias existentes? Temos tecnologia, know-how, insumos, para produzir essas vacinas imediatamente e de forma independente? Quem irá produzir?”, questiona a entidade, no Estadão.
Bom, a proposta só prevê a concessão de patentes quando houver “condições objetivas de mercado, capacitação tecnológica e de investimentos para sua produção no Brasil”, o que deveria minimizar essa preocupação.
O texto segue para a Câmara.
Vitória também no Supremo
E ontem foi um dia importante para quem luta contra as barreiras que a propriedade intelectual impõem ao direito à saúde porque além do Senado, o STF também avançou na direção da racionalização das patentes. No caso, a discussão é sobre a constitucionalidade de um dispositivo da Lei de Propriedade Industrial que acaba estendendo o monopólio dos produtos para além do prazo de 20 anos, caso haja demora do INPI em analisar os pedidos. Em um longo voto, com 77 páginas, que deve terminar de ler somente na próxima semana, o ministro Dias Toffoli indicou que é contra o artigo 40. Para apoiar seu argumento, ele citou um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) que mostra que, entre 2008 e 2014, quase todos os pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos se valeram desse artigo. “O prazo das patentes sempre estará condicionado a uma variável absolutamente aleatória, a gaveta”, disse Toffoli.
O ministro do STF adiantou que é favorável à modulação dos efeitos da decisão, o que livraria as patentes já concedidas com o prazo estendido de caírem. Mas a ótima notícia é que ele defende que isso não pode valer para a saúde: produtos, processos farmacêuticos, equipamentos ou materiais de uso em saúde teriam, assim, o prazo limitado aos 20 anos do pedido de registro.
A Procuradoria-Geral da República, que propôs o processo, indica que a decisão pode afetar patentes ligadas ao enfrentamento da covid-19. Dados prestados pelo INPI apontam que existem nove patentes em vigor há mais de 20 anos com indicação de possível uso no tratamento da doença.
O INPI também informou que conta com 143.815 processos pendentes. “Dentre os pedidos pendentes, os que aguardam concessão há mais de dez anos, no caso de invenção, ou de oito anos, no caso de modelo de utilidade, totalizam nada menos do que 8.837”, destaca o voto de Toffoli. Nesse sentido, o ministro também propõe a contratação de servidores para fazer frente à demanda do órgão.
O resultado final do julgamento dependerá da posição da maioria da Corte, que votará na próxima semana.