Seguridade Social: caminho para solucionar o desfinanciamento do SUS, lutar contra a desigualdade e reconstruir a democracia
Na primeira edição da Saúde em Debate de 2023, editorialistas Eli Iola Gurgel Andrade, Ana Maria Costa, Maria Lucia Frizon Rizzotto revisitam o conceito de Seguridade Social como “eixo central para a garantia da proteção social, estruturada enquanto responsabilidade do Estado, a ser garantida a todos os brasileiros, conforme expresso na Constituição Federal de 1988 (CF/88)“. Acesse a postagem sobre o lançamento da publicação nesse link e veja a seguir o editorial na íntegra.
Seguridade Social: caminho para solucionar o desfinanciamento do SUS, lutar contra a desigualdade e reconstruir a democracia
Eli Iola Gurgel Andrade1, Ana Maria Costa2, Maria Lucia Frizon Rizzotto2
- Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) – Belo Horizonte (MG), Brasil.
- Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
ESTE EDITORIAL REVISITA O CONCEITO DE SEGURIDADE SOCIAL como eixo central para a garantia da proteção social, estruturada enquanto responsabilidade do Estado, a ser garantida a todos os brasileiros, conforme expresso na Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Naquele momento de transição para a democracia, após décadas de acelerado crescimento econômico e elevada concentração da riqueza, a sociedade brasileira inscreveu em sua lei máxima a decisão de não mais compatibilizar desigualdade e desenvolvimento. Em seu art. 194, reconhece o direito à cidadania e ao bem-estar social:
A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social1.
Passadas mais de três décadas, a destruição de direitos e retrocessos ocorridos nos últimos anos desafia a reconstrução democrática do Brasil. Neste momento, portanto, é fundamental retomar o debate que originou a noção de Seguridade Social, à qual foi integrado o direito universal à saúde.
Do ponto de vista histórico, a origem da proteção social no Brasil localiza-se na década de 1920, quando surgiram as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) e, posteriormente, na década de 1930, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), ambos voltados à proteção do trabalhador urbano assalariado. A unificação dos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, durante o regime militar, centralizou a gestão dos recursos oriundos das contribuições dos trabalhadores e empregadores, consolidando o modelo de Seguro Social.
Santos2 caracteriza esse processo como cidadania regulada em que os direitos do cidadão se restringem aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo. O avanço para um modelo distributivo e universal ocorreu com a CF/88 que cria o Sistema de Seguridade Social, promovendo a proteção social a direito universal e dever do Estado. Com isso, a Seguridade Social brasileira preserva a solidariedade intergeracional, prevê a participação do Estado na gestão do Fundo Público e introduz o princípio distributivo com as contribuições sociais sobre o faturamento (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins) e lucro das empresas (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL). Estabeleceu-se, assim, a cidadania universal, ou seja, o direito de todos e todas à proteção social, com orçamento específico e fontes exclusivas. No art. 198, encontra-se instituído o Orçamento da Seguridade Social (OSS) para cobrir gastos da Saúde, Previdência e da Assistência Social1.
O Sistema Único de Saúde (SUS), sempre importante relembrar, foi criado com base na concepção de Estado de Bem-Estar Social e aconteceu no Brasil de forma tardia em relação aos Estados europeus que adotaram o modelo universal para promover justiça social e recuperar os países da miséria e destruição pós-segunda guerra mundial.
O conceito ampliado de saúde que fomentou o debate constituinte e está nos princípios defendidos pelo Movimento da Reforma Sanitária (MRS) não restringe o direito à saúde ao direito à assistência médico-sanitária. Ao contrário, esse conceito ancora-se na qualidade de vida das pessoas, condição precípua para que as populações e as coletividades acumulem melhores condições de saúde. Nesse contexto, portanto, a assistência à saúde não se limita à assistência na doença. É a partir dessa concepção que a saúde na nossa Constituição compõe o tripé da Seguridade Social e, dessa forma, torna-a dependente do conjunto das políticas sociais que promovem segurança e qualidade de vida.
A CF/88, em seu art. 198, criou o SUS para realizar as ações e serviços públicos de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, orientado pelas diretrizes da descentralização, com direção única em cada esfera de governo; do atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e com participação da comunidade1.
Orientado a fortalecer os laços de solidariedade na tessitura social, o modelo beveridgiano de Seguridade Social adotado pelo Brasil está sustentado e garantido por um financiamento de base social ampla, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal (DF) e dos municípios, e de contribuições: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, a receita ou o faturamento e o lucro; II – do trabalhador; III – de receitas de concursos e prognósticos; e IV– do importador de bens e serviços do exterior1.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) de 1988, o art. 55 definia que, até a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), pós-constituinte, 30%, no mínimo, do orçamento da Seguridade Social seriam destinados ao setor de saúde. Tal disposição nunca foi cumprida3.
Nos anos finais da década de 1980, com a transição democrática brasileira novamente submergindo em cenário de incertezas, estabelecia-se o período de outubro de 1993 como prazo final para a revisão (inclusive na íntegra!) da recém-promulgada CF/88, pela maioria simples do Congresso eleito em 1990. Ao mesmo tempo, alardeavam-se ameaças quanto à insolvência da Previdência Social, pilar histórico fundamental para assegurar a construção de um Sistema de Seguridade Social. Projeções realizadas, ainda em 1989, pela Secretaria de Estatística e Atuária do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) chegavam a apontar, por exemplo, que o gasto previdenciário poderia representar 14,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1995. A partir daí, a propalada ‘crise estrutural da previdência’ passou a cumprir um papel estratégico na postergação do novo financiamento e estruturação do Sistema de Seguridade Social consagrado pela CF/884.
As sucessivas reformas da previdência ao longo das décadas de 1990 e 2000 foram delineando um distanciamento paradigmático do modelo constitucional de Seguridade Social, chegando mesmo a se pretender desconfigurar sua feição pública, para transformá-la em um sistema de seguro privado e individualizado. Em fevereiro de 2019, o governo Bolsonaro recém-empossado enviou a Proposta de Emenda à Constituição nº 6, de 2019, ao Congresso Nacional. Com a justificativa de que “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”, a proposta visava estabelecer uma ‘nova previdência’. Pretendia-se desconstitucionalizar totalmente o Sistema de Seguridade Social, sinalizando para a adoção de um Regime de Capitalização Privada, em ruptura com o modelo de solidariedade intergeracional, conceito histórico de financiamento previdenciário, desde as primeiras CAPs, em 19231.
A proposta do Regime de Capitalização Individual (análogo ao modelo chileno) foi derrotada. Contudo, ao final, diversos dispositivos contidos na aprovada Emenda Constitucional nº 103, de 2019, impõem barreiras de acesso à proteção previdenciária, desconsideram a dramática situação do mercado de trabalho, retardam a vigência dos direitos e rebaixam o valor dos benefícios dos trabalhadores3.
A trajetória do financiamento da saúde também documenta a grande resistência à implantação do modelo de Seguridade Social no Brasil. Em que pesem os esforços para definir valores mínimos para o seu financiamento, como o arrastado e difícil debate da Emenda Constitucional nº 29, de 20005, que define que os estados e o DF devem aplicar 12% de recursos oriundos de impostos próprios e de transferências e os municípios 15%, a definição da responsabilidade do nível federal nunca foi estabilizada em níveis suficientes para o adequado financiamento de um sistema público e universal de saúde. O Brasil hoje, contraditoriamente, e apesar da importância do SUS, gasta mais com a saúde privada do que com a saúde pública. Nos últimos anos, a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, passou inclusive a desfinanciar a saúde, que teve seu piso mínimo de gastos (15% da Receita Corrente Liquida – RCL) congelado desde 2017.
Em 2022, a sociedade brasileira demarcou nas urnas a retomada das conquistas democráticas de 1988. Tal reconstrução precisa trazer para seu centro o desafio da implantação da Seguridade Social, reencontrando a finalidade histórica com a qual foi criada: fundar o pacto de solidariedade social contra a desigualdade e consolidar a democracia.
A tese proposta aqui é pela retomada do arcabouço constitucional para resolver de forma definitiva a questão do financiamento do SUS. Cálculos6 mostram que, em 2021, o valor destinado para a saúde correspondeu a apenas 13,4% do OSS, ou seja, a União investiu menos da metade dos recursos previstos, caso fosse utilizado o critério constitucional de 30% do OSS7.
Essa retomada implica também a reorganização da Seguridade Social conforme expresso nos arts. 194 e 195 da CF/88. O Brasil tem o seu arcabouço constitucional, cabe cumpri-lo. Para tanto, defendemos a criação do Conselho Nacional da Seguridade Social, previsto no art. 194 da CF/881, instituído pela Lei nº 8.212, de 24 de julho de 19918 (art. 6º) e revogado pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 20019 (art. 35). O caminho envolve reorganizar o OSS, conferir transparência e resgatar suas fontes de receita que hoje se encontram subtraídas pelo elevado nível de renúncias, desvinculações, desonerações e sonegação fiscais vigentes.
Com esse referencial, resta o desafio de repensar o modelo de previdência social para o século XXI, considerando a questão do envelhecimento populacional, o perfil epidemiológico e a necessidade de uma nova política social de cuidados continuados como mais um dos pilares da Seguridade Social. Ainda nesse contexto, para o futuro, o Brasil precisa olhar e solucionar o grave problema dos trabalhadores formais cujos direitos à saúde estão hoje arbitrados no âmbito mercantil, pelos contratos entre empregadores e os planos privados de saúde. Como em uma cena do absurdo, são os trabalhadores formais que atualmente constituem 82% da clientela dos seguros e planos privados de assistência à saúde no Brasil.
A pandemia da Covid-19 trouxe claras evidências sobre a importância e a legitimidade social do SUS, além de ter possibilitado a rearticulação de movimentos em defesa do SUS universal, de qualidade e 100% Público. A campanha vitoriosa do Presidente Lula, que tomou posse para seu terceiro mandato em 2023, explicitou o compromisso de fortalecimento do SUS, criando uma janela de oportunidade para o sistema. Entretanto, o cenário e a dinâmica dos jogos de interesses que dominam o Estado brasileiro revelam que não será tarefa fácil garantir financiamento adequado ao SUS, cabendo às entidades do MRS, aos trabalhadores, sindicatos, partidos políticos e à sociedade a luta para retomar a ideia de Seguridade Social e seu financiamento, articulando as três áreas que a compõem, em um movimento que revele o significado e o avanço que essa conquista histórica representou na CF/88.
Referências:
- Brasil. Constituição (1988) de 5 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. 5 Out 1988.
- Santos WG. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus: 1979.
- Brasil. Emenda Constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Diário Oficial da União. 12 Out 2019.
- Andrade EIG. Desafios da Seguridade Social Brasileira, dos benefícios sociais e das mulheres. ANFIP–Rev. Segurid. Soc. Tribut. 2023; XXX(148).
- Brasil. Emenda Constitucional nº 29 de 13 de setembro de 2020. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União. 13 Set 2020.
- Associação dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. Análise da Seguridade Social 2021. 22. ed. Brasília, DF: ANFIP; 2022.
- Santos L, Funcia FR. Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Domingueira saúde. 2020 [acesso em 2023 maio 10]; (20):1. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira–n-20-maio-2020?lang=pt.
- Brasil. Lei nº 8.212 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 24 Jul 1991.
- Brasil. Medida Provisória nº 2.216-37 de 31 de agosto de 2001. Altera dispositivos da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 31 Ago 2001.