Diabetes, ativismo digital e participação social

O novo texto da coluna Saúde é Democracia, fruto da parceria do Cebes com o portal Outra Saúde, mostra como a internet se tornou um espaço crucial para pessoas com diabetes se unirem, dialogarem com as autoridades e impulsionarem mudanças no SUS. Débora Aligieri explora o ativismo digital e a participação social como ferramentas poderosas na luta por uma saúde mais inclusiva. Débora Aligieri tem diabetes tipo 1, é advogada e ciberativista em saúde, administradora do blog Diabetes e Democracia, mestra em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, e apaixonada pelo SUS. Leia mais sobre a importância desses grupos e a necessidade de ampliar seu espaço.

Novembro azul e ciberativismo em diabetes: participação social no SUS em tempos de transformação digital

Como a internet permite que pessoas que vivem com a doença possam se organizar, dialogar com o poder público e conquistar mudanças importantes para o SUS. E por que é preciso que se abra mais espaço para esses grupos

No dia 14 de novembro é celebrado o Dia Mundial do Diabetes, campanha de conscientização e prevenção da doença por meio de atividades desenvolvidas durante todo o mês, denominado de Novembro Azul do Diabetes (para se diferenciar da campanha contra o câncer de próstata).

Não pretendo aqui discutir a propriedade do Novembro Azul, tampouco a questionável eficácia das campanhas dos meses coloridos para a prevenção de doenças e agravos em saúde. Mas abordar um fenômeno que ganhou relevância nas últimas décadas com a consolidação da sociabilidade em redes digitais – o ciberativismo em saúde – e suas potencialidades e desafios para a participação social no Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente neste momento de intensos debates sobre saúde digital. E o diabetes (condição com que convivo há 37 anos) tem forte relação com esta forma de atualização da luta pelo direito à saúde no Brasil.

Diabetes no Mundo e no Brasil

A cada dois anos, a Federação Internacional de Diabetes (IDF, em inglês) publica um relatório com dados da doença (o mais recente será publicado hoje). Em sua décima edição de 2021, o IDF Atlas estimava 537 milhões de pessoas convivendo com diabetes no mundo (ou 10.5% da população mundial), sendo o Brasil o sexto país com maior prevalência da doença, contabilizando cerca de 15,7 milhões de pessoas. Era também o 3º em número de crianças e adolescentes com o tipo 1 (92.300) e em maiores gastos (42,9 bilhões de dólares) para o tratamento da condição e de suas complicações, foco da campanha deste ano “Saiba seu risco, construa um futuro saudável”.

As estratégias desenvolvidas para o enfrentamento deste desafio global para os indivíduos e para os sistemas de saúde concentram-se na adoção de protocolos e diretrizes clínicas voltadas ao controle glicêmico e no acesso à assistência profissional e farmacêutica para o autocuidado. Nossas experiências de convívio com a doença e as tecnologias leves, integrantes da construção compartilhada do cuidado, e essenciais ao dialogismo entre saberes técnicos e leigos, são praticamente ignoradas por estes modelos de cuidado e pelas políticas públicas.

No Brasil, o acesso à insulina e outros medicamentos e insumos para o controle glicêmico é garantido pelo SUS. Mas em outros países sem um sistema de saúde universal, a realidade é outra. Em relatório publicado em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a falta de acesso à insulina por 30 milhões de pessoas no mundo, atribuindo a preços altos, baixa disponibilidade de insulina humana, poucos produtores (três multinacionais) dominando o mercado de insulina, e sistemas de saúde frágeis como as principais barreiras ao acesso universal ao medicamento.

O relatório da OMS também destaca como um desafio o alto custo dos análogos de insulina – com melhorias no tempo de ação e redução de efeitos colaterais – 3 vezes mais caras que as insulinas humanas em alguns países. Os análogos de insulina foram incorporadas ao SUS para o tratamento de diabetes tipo 1 a partir da mobilização de diabéticos e seus familiares nas mídias digitais, por meio de publicações em blogs e em redes sociais, em articulação com associações de pacientes e sociedades profissionais.

Participação social e ciberativismo em diabetes

O ciberativismo em saúde envolve ações colaborativas articuladas por meio de plataformas e mídias digitais por pessoas e grupos em busca de mudanças sociais, usando a internet na conquista de suporte para movimentos e causas pela difusão de informações, discussão coletiva de ideias e proposição de ações, criando canais de participação política. O fenômeno mostra como as estratégias de participação social na construção da política de saúde no Brasil foram se atualizando com o uso das tecnologias digitais e da auto-organização de indivíduos e coletivos, típica do ciberespaço, em defesa do direito à saúde.

No caso do diabetes, especialmente o tipo 1 (mais prevalente no ciberespaço), aprendemos a transformar nossas experiências com o processo saúde-doença em ferramentas de reivindicação de direitos, usando a internet como espaço de luta política. Levantamos a pauta da incorporação dos análogos de insulina ao SUS em nossas publicações sobre nosso cotidiano, muito além do controle glicêmico. Desenvolvemos conhecimentos sobre o processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde participando de consultas públicas e dialogando com o Ministério da Saúde pelas redes sociais. Logramos modificar pareceres desfavoráveis à incorporação dos análogos, originar a criação de uma linha de cuidado até então inexistente no SUS, incluir a hipoglicemia como desfecho relevante na análise de evidências em saúde, e cobrar a efetiva oferta do medicamento na ponta. Nessa trajetória, deixamos de ser objetos da política e passamos a ser sujeitos da transformação desejada, com ampliação das ofertas do SUS.

Potencialidades e desafios para a participação social no SUS na era digital

A internet favorece o protagonismo dos usuários na construção de demandas políticas em saúde, mostrando o ciberativismo em diabetes como a participação social no SUS vem se atualizando em tempos de transformação digital. Conseguimos propagar nossa voz, mas ainda temos dificuldades de nos fazer ouvir e respeitar como portadores de saberes em saúde. Prova disso é a ausência da perspectiva leiga nas discussões da Secretaria da Informação e Saúde Digital, do Ministério da Saúde.

Também precisamos ser incluídos nos debates sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, para que possamos nos apropriar melhor das barreiras impostas pela indústria farmacêutica ao efetivo acesso aos medicamentos. Somente assim, poderemos avançar em outras questões, relacionadas ao modelo de cuidado e aos determinantes sociais da saúde.

A luta pela construção de um sistema de saúde justo e que concretize o ideário do Movimento da Reforma Sanitária segue nas novas arenas de participação popular, por meio da ocupação do ciberespaço com nossa luta pelo direito à vida.

Leia o artigo publicado no portal Outra Saúde.

Referências:

Crédito: Unsplash