O papel do Brasil no cenário global de ‘multilateralismo fragilizado’ e lideranças pautadas pelo ultraneoliberalismo
Em texto para o portal do CEE-Fiocruz, a jornalista Eliane Bardanachvili aborda o Cebes Debate sobre o cenário geopolítico mundial que aconteceu no último dia 22 de janeiro com o sanitarista Paulo Buss. Veja na íntegra a seguir.
A relevância do Brasil no atual cenário global, a “crise profunda” do multilateralismo e a “incompetência” das lideranças que estão no poder no mundo para enfrentar os desafios sociais, políticos, ambientais, econômicos “e também éticos”, pautaram a exposição do sanitarista Paulo Buss no debate O Brasil e a agenda global da saúde, promovido pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 22/1/2024. O evento contou com o presidente e a diretora do Cebes, respectivamente, Carlos Fidelis e Ana Costa, como debatedores, e teve mediação do sanitarista José Noronha.
Paulo Buss lembrou que o debate do Cebes coincidia com a realização de eventos relevantes para as relações multilaterais. Um deles, a abertura da 154ª Sessão do Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que definirá a agenda da Assembleia Mundial da Saúde, marcada para maio de 2024. No mesmo dia, terminou a 19ª Cúpula do Movimento dos Não Alinhados (MNA) – fórum político formado por 120 países que não se alinham oficialmente a algum bloco de poder –, em Campala, Uganda, onde também se realiza a reunião do G 77+China, com a participação do chanceler brasileiro Mauro Vieira. “Pela primeira vez, o Movimento dos Não Alinhados e o G77, ou seja, o Sul Global, mais de 150 países, estão sob a mesma presidência, de Uganda. É um dia histórico”, ressaltou Paulo.
Conforme analisou o sanitarista, os países nesses fóruns vêm atuando “ferozmente”, dando “uma arrancada”, entre outros pontos, criticando os blocos dos países desenvolvidos, que “se esqueceram que tivemos uma pandemia e que uma nova pandemia está por vir”. Entre outras críticas, Paulo apontou os gastos dispendidos com questões militares no mundo, que chegaram a 2,44 trilhões de dólares em 2022. “A Agenda 2030 aponta que precisaríamos de 500 bilhões para parar com a progressão bárbara do aquecimento global, da perda da biodiversidade, salvando, assim, nossa casa comum, o planeta”, comparou. “Isso mostra a insanidade das lideranças globais, que não merecem estar aí, mas estão porque representam os interesses de um capital apátrida, descompromissado com o progresso”, apontou.
Em sua análise, Paulo destacou a importância que o governo Lula vem conferindo à dimensão internacional e lembrou o discurso do presidente, após a vitória nas eleições de 2022, em que anunciou a retomada de “um Brasil soberano que falava de igual para igual com os países mais ricos e poderosos e, que ao mesmo tempo contribuía para o desenvolvimento dos países mais pobres”. Essa importância dada ao cenário global, observou Paulo, esteve presente desde o trabalho realizado pela equipe de transição, em especial na área da Saúde, que apontou “elementos do campo da cooperação internacional”, passando pela mensagem do presidente ao Congresso Nacional, afirmando que o Brasil passará a ter “uma política externa soberana, dedicada ao desenvolvimento sustentável e à construção de nova ordem global comprometida com o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental”.
Para Paulo, a crise sanitária da Covid-19, que se prolonga até agora – “estamos recomendando nova de vacina”, lembrou – apenas aprofundou uma crise múltipla pré-existente, relacionada ao estágio atual do capitalismo ultraneoliberal. “Uma crise multidimensional, política, econômica, social, ambiental e, eu agregaria, ética, que mostra a incompetência política e técnica da governança global e lideranças mundiais que estão no poder, para enfrentar um desafio de tamanha envergadura”, conforme avaliou, ressaltando que sua análise decorre do trabalho realizado pelo observatório de Saúde Global do Cris/Fiocruz.
“Podemos chamar o sistema ONU de um multilateralismo fragilizado, que tem retórica, mas sem concretizar decisões ou resoluções. Não por incompetência dos líderes, do secretariado, que aliás são profissionais de muita competência, mas dos Estados-membros, que não respeitam as decisões tomadas, fragilizando esse sistema”, observou. “As lideranças globais, hoje, são medíocres e dominadas, não pelo sistema político dos países, mas por esse terrível poder que é o capital financeiro apátrida e irresponsável. Nessa fase ultraneoliberal não se identifica mais onde está o poder. O sistema engole as figuras políticas, como engoliu Biden, como gerou Trump”.
É nessa “crise profunda do multilateralismo”, destacou Paulo, que o Brasil está atuando em seu retorno ao panorama global, fazendo uma leitura correta, aguda e bem localizada dessa realidade. “Os diplomatas brasileiros, em todos os encontros que temos observado, com Celso Amorim, com o grupo do Ministério das Relações Exteriores, mostram que o Brasil não está perdido nessa leitura, ao contrário, as participações dos brasileiros nesse elenco de instituições, grupos de países, agências é cirúrgica”.
Paulo observou que haverá 80 eleições no mundo em 2024, nas quais “a ameaça da direita é grande”. Um exemplo que apresentou foi o da Índia, onde o atual dirigente, Narenda Modi, deverá ser reeleito. “É a face de uma índia de direita racional, que sabe o que quer – o que é mais perigoso”.
No campo da saúde global, lembrou, o Brasil está presidindo o G20, e continuará na troika (trio de países formado pelo último ocupante da presidência do grupo, o atual e o próximo), ao passar a presidência para a África do Sul, em 2025. Nesse mesmo ano, o país passa a presidir o Brics, que tem a Rússia à frente em 2024. Além disso, vai receber a Conferência do Clima (COP30), que se realizará em Belém, em 2025.
Paulo apontou dois importantes espaços na governança da saúde global nos quais o Brasil pode contribuir: o órgão negociador intergovernamental do Tratado de Pandemias da OMS, no qual o Brasil tem a vice-presidência das Américas, com o embaixador Tovar da Silva Nunes; e a reforma do Regulamento Sanitário Internacional, que se dá de forma complementar no mesmo grupo. “Aí reside um espaço de luta muito grande, porque se está discutindo acesso a inovações, a vacinas, e a resistência dos países desenvolvidos é algo inominavelmente grande”, criticou. “O máximo que aceitam é liberar patente, o que não adianta, porque se não liberar a transferência do como fazer, se não houver mudança nas orientações da indústria farmacêutica, que domina a União Europeia e os Estados Unidos, os grandes detentores dessas tecnologias, não alcançaremos autonomia, soberania sanitária”.
Paulo fez uma convocação: “Vamos ficar de olho no G 20, na grande linha política e na questão da saúde”. Ele destacou que, em 8 e 9 de abril de 2024, se realizará a primeira reunião do grupo de trabalho dos ministros da Saúde do G20, no qual a ministra Nísia Trindade Lima vai propor os quatro pontos que o Brasil que trará como prioridade: Equidade em saúde – “não apenas no acesso à inovação, pois o Brasil não pode querer discutir inovação em um cenário em que não há anti-hipertensivo, anestésicos, a lista de medicamentos essenciais da OMS”, diz Paulo –; prevenção, preparação e resposta a pandemias, com foco na produção local e regional de medicamentos, vacinas e produtos de saúde estratégicos; saúde digital, para a expansão da telessaúde, integração e análise de dados dos sistemas nacionais de saúde; e mudanças climáticas e saúde.
“O Brasil não pode aceitar o discursinho dos países desenvolvidos no G20, de que o papel da saúde na questão do clima é fazer com que o sistema de saúde emita menos gases do efeito estufa. A saúde tem que denunciar que a queima de combustíveis fósseis, a perda de biodiversidade, o desmatamento e o não replantio de florestas nativas no grande colar verde que forma as florestas do Brasil, Congo e Extremo Oriente que freiam a possibilidade de reduzir os efeitos das mudanças climáticas”, propôs. “O tema da equidade deve cruzar todos os demais na proposta do Brasil no G20”.
Esse texto, originalmente publicado no site do CEE-Fiocruz, pode ser acessado nesse link. Veja o Cebes Debate no link ou a seguir: