Como a ditadura deixou o país adoecer
O presidente do Cebes, Carlos Fidelis, publicou no portal Ciência Hoje uma matéria sobre como a ditadura civil-militar de 64 deixou o país adoecer de meningite, que assolou o país na primeira metade da década de 1970.
Em 2024, completam-se 60 anos do golpe que instaurou o regime autoritário e violento no Brasil. A ditadura então instituída não trouxe apenas censura, prisões arbitrárias, prática de torturas e assassinatos perpetrados por agentes do Estado. Provocou também a disseminação de uma doença e o aumento do número de mortes causadas por ela: a meningite que assolou o país na primeira metade da década de 1970.
Este ano marca seis décadas do golpe que instaurou uma ditadura militar no Brasil – um regime autoritário e violento que dominou o nosso país de 1964 até 1985. Um período triste, com a ocorrência de censura, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos perpetrados por agentes do Estado que deveriam zelar pelo cumprimento da lei.
Foram os anos de chumbo que marcaram uma geração. Anos em que imperou a estupidez frente aos sonhos de construção de um país inclusivo, democrático e aderente ao processo civilizatório. Anos em que, de acordo com a bem-humorada crítica de Chico Buarque, a maravilha de ver um boi voador cedia lugar à boçalidade da proibição de tudo aquilo que parecia estar fora da ordem ou não cabia na compreensão das autoridades instituídas pela força das armas e não pela vontade popular expressa nas urnas.
Regimes autoritários são como doenças epidêmicas: contaminam todo o tecido social, causando mortes e sequelas terríveis. Atingem as pessoas e as instituições, podendo causar danos incalculáveis. Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, o governo militar promoveu, em 1970, a cassação de 10 de seus mais competentes cientistas, encerrando linhas de pesquisa e reforçando o regime de medo que pairava desde 1964. As declarações de Raymundo de Britto, ministro da Saúde entre 1964 e 1967, ao jornal Correio da Manhã de 24 de abril de 1964, poucos dias após o golpe, não deixam margem a dúvidas:
“Se é verdade que não há fronteiras para a ciência, também é exato que há fronteiras para os cientistas. As ideias exóticas que em Manguinhos foram infiltradas serão banidas definitivamente, porque o nosso país precisa de homens que nos ajudem a acabar com o sofrimento do povo e não de elementos cujo único fito é destruir a liberdade, esfacelando o regime democrático. Manguinhos de amanhã será uma colmeia de trabalho e não como queriam alguns: um foco de ideias subversivas. O Instituto Oswaldo Cruz terá todos os recursos de que carece para suas pesquisas”.
Regimes autoritários são como doenças epidêmicas: contaminam todo o tecido social, causando mortes e sequelas terríveis
Pode o autoritarismo facilitar a disseminação de uma doença e o aumento do número de mortes provocadas por ela? A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia da covid-19 disse que sim. Os estudos sobre necropolíticas, conceito criado pelo historiador camaronês Achille Mbembe, também.
Este pequeno ensaio pretende abordar a influência da censura exercida pela ditadura militar na propagação da epidemia de meningite que assolou o Brasil na primeira metade da década de 1970. Igualmente busca apresentar alguns fatores desconhecidos do grande público quando se trata do fenômeno das epidemias.
Momentos de reflexão
Economia, política e cultura são chaves importantes e tradicionais de explicação e interpretação da vida em sociedade. Recentemente, outras dimensões da atividade humana, como a área da saúde, a ciência e o meio ambiente, alcançaram essa condição, para citarmos algumas que se popularizaram a partir de fins do século 19 e início do 20.
Longe de serem episódios restritos aos campos da medicina ou da biologia, as epidemias, assim como suas versões pandêmicas, são momentos de grande sofrimento que desafiam a ordem estabelecida, as crenças, a ciência e as formas de organização social. São momentos de ruptura e confusão entre o direito individual e o direito coletivo. São momentos ricos para observação da sociedade.
O avanço da fronteira econômica sobre nichos ecológicos anteriormente equilibrados, a integração de mercados, a estrutura dos transportes, o conhecimento científico, o domínio tecnológico, a organização dos serviços de atenção à saúde e as características das doenças estão entre os fatores que determinam a velocidade e o alcance de uma epidemia ou de uma pandemia. Hoje, também é comum a utilização do termo ‘sindemia’, criado na década de 1990 pelo antropólogo e médico norte-americano Merrill Singer, que assim se referiu à interação sinérgica entre um conjunto maior de condicionantes na propagação de epidemias.
Por outro lado, o historiador norte-americano Charles Rosenberg chamou a atenção para a ocorrência de um roteiro dramático que parece envolver parte significativa das epidemias. Um itinerário que começa pela censura, pela negação da existência ou pela minimização do potencial de risco das epidemias, uma vez que a eclosão de episódios epidêmicos não faz bem para os negócios.
A procura por culpados pela propagação da doença segue o momento de negação, uma busca que pode ser fortemente informada por preconceitos, como aqueles que falam da existência de grupos de risco. Os procedimentos de defesa também integram essa dramaturgia. Aqui temos a quarentena, os rituais religiosos, a busca pela panaceia milagrosa e salvadora ou uma descoberta da ciência.
A procura por culpados pela propagação da doença segue o momento de negação, uma busca que pode ser fortemente informada por preconceitos, como aqueles que falam da existência de grupos de risco
A passagem de uma epidemia deixa marcas: foram as doenças transmissíveis que mais contribuíram para a criação de instituições da saúde pública. Entretanto, a ocorrência de uma epidemia não pode ser reduzida a alguns elementos comuns, como os apontados por Rosenberg. Epidemias, como já afirmamos, são fenômenos complexos. Embora possam estar relacionadas a estruturas globais, elas precisam ser estudadas na sua especificidade e nos territórios onde ocorrem.
Assim como as características da doença e suas formas de transmissão, as condições locais são elementos essenciais para a compreensão do fenômeno. Vale lembrar que a pandemia de covid-19, por exemplo, não se manifestou da mesma forma pelos lugares por onde passou. As ações dos governos constituem-se fatores essenciais para a compreensão de quadros epidêmicos.
A meningite nos anos 1970
A meningite era uma doença endêmica em nosso território, com surtos esporádicos. O Brasil já havia passado por duas epidemias de meningite, em 1923 e em 1945, mas nada parecido com o que aconteceu na década de 1970, período em que se verificou um avanço significativo da doença em diversas cidades e estados do país.
A escalada epidêmica tem início em 1971, na periferia de São Paulo, a maior cidade brasileira, que, junto com o Rio de Janeiro e outros grandes centros, era um polo atrator da migração de contingentes populacionais expulsos do Nordeste pela introdução da agricultura mecanizada e pela falta de oportunidades. Estávamos vivendo a passagem de um país rural para um Brasil urbano, fase em que se formaram os grandes cinturões de miséria que marcam as nossas grandes cidades.
A meningite meningocócica é uma doença que atinge as membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal, podendo ainda estar relacionada a outros agravos. Pode ser causada por bactérias, vírus ou fungos. A doença se apresenta na forma de vários sorotipos. A forma bacteriana é a mais perigosa, podendo a taxa de óbitos chegar a 30%. Dentre os sorotipos mais comuns, temos a meningite tipo C e, entre os mais perigosos, está a meningite tipo A.
No início da década de 1970, a propaganda governamental exaltava um Brasil potência, o país do futuro. Um país idealizado, tricampeão mundial de futebol. Um país do milagre econômico. Um país que nada tinha a ver com a miséria concreta das periferias dos centros urbanos. A admissão da epidemia foi considerada então como incompatível com a imagem que se queria projetar do país.
Iniciada em 1971, a epidemia de meningite no Brasil foi fortemente censurada pela ditadura militar que comandava o país. Uma censura que teve impactos altamente negativos para a saúde da população e que contribuiu decisivamente para o avanço da doença para outras áreas da cidade de São Paulo e, de lá, para outras regiões do país, com destaque para o Rio de Janeiro e Salvador.
Estudos como a “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”, de José Cássio de Moraes e Rita Barradas, apontam que o número de mortes – antes girava em torno de 7% – oscilou entre 12% e 14% dos acometidos em 1972. Apesar de aumentar com a propagação da doença, a letalidade não cresceu nas proporções esperadas. Quando as informações começaram a ser difundidas, entre 1974 e 1975, ela teve o seu avanço reduzido e, felizmente, não acompanhou o crescimento do número de casos, como era de se esperar. Isso, no entanto, não impediu que se alcançasse o patamar inaceitável de 10%. O fato é que o acesso à informação ajudou a salvar vidas.
Alguns autores se referem ao fato de terem sido utilizadas, sem sucesso, 200 mil doses de uma vacina norte-americana. Isto porque, segundo estes analistas, o produto não conferia imunidade para crianças abaixo dos 2 anos de idade.
A isso se somou a mudança de perfil da epidemia. Uma mudança que certamente se beneficiou da censura, uma vez que esta contribuiu para a livre circulação da doença. Iniciada pelo sorotipo C, ela passou a contemplar também o sorotipo A – mais perigoso e com maior capacidade de transmissão. Passou também a atingir jovens e adultos.
Em fins de 1974, já não havia condições de esconder a ocorrência de uma epidemia que, naquele momento, não atingia somente as áreas pobres e abandonadas da cidade. Ela agora chegava também a bairros nobres e aos filhos da classe média e alta, segmentos com maior poder de pressão.
O pânico se espalhou, e ficou evidente o despreparo da saúde pública para lidar com a situação. Não tínhamos vacinas disponíveis, pessoal suficiente, tampouco a estrutura hospitalar tinha condições de atender a uma demanda crescente. O Hospital Emílio Ribas (São Paulo), que tinha capacidade para 300 leitos, chegou a atender 1.200 pacientes acomodados em colchões espalhados pelos corredores, como retratou a imprensa da época.
Campanha de vacinação
Em 1975, a censura foi oficialmente extinta, e o jogo então começou a virar. Estados, municípios, sociedade e mídia foram todos convocados a entrar no esforço nacional de combate à epidemia. Voluntários se apresentaram e uma enorme estrutura logística foi montada e posta em funcionamento em um país de dimensões continentais
Em 1975, a censura foi oficialmente extinta e o jogo então começou a virar. Estados, municípios, sociedade e mídia foram todos convocados a entrar no esforço nacional de combate à epidemia
Facilitou bastante a campanha de vacinação com uso da pistola Ped-o-jet, injetor hipodérmico sem agulha, depois abandonado pela possibilidade de contaminação. De fácil manuseio, a pistola permitia vacinar rapidamente um grande número de pessoas e facilitava o treinamento de pessoal.
Para combater a epidemia, era preciso cerca de 80 milhões de doses de vacinas capazes de atacar os sorotipos A e C. Uma quantidade inexistente no mundo. Fabricada no Instituto Mérieux, na França, a vacina precisava ter sua produção aumentada. O instituto precisou construir uma nova fábrica para atender a demanda brasileira.
O negociador da importação do imunizante foi Vinícius da Fonseca (1923-2008), economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) muito ligado a João Paulo dos Reis Velloso (1931-2019), ministro do Planejamento com forte influência sobre o presidente Ernesto Geisel (1907-1996). O envolvimento de Vinícius da Fonseca com o setor da saúde fez com que ele fosse convidado, em 1975, a presidir a então combalida Fundação Oswaldo Cruz, vítima de perseguições políticas anteriormente mencionadas.
Pensando em longo prazo, Vinícius da Fonseca negociou com os franceses não apenas a compra das vacinas, mas também a transferência da tecnologia do imunizante. Paralelamente, criou Bio-Manguinhos, a fábrica de vacinas da Fiocruz. Inaugurava-se, assim, a estratégia de uso do poder de compra do Estado para alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico em uma área de ponta e com grande relevância social. Uma política retomada com vigor no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
Este artigo foi finalizado no dia 8 de janeiro de 2024, data que marca um ano da tentativa de golpe no Brasil promovida pela extrema-direita, que buscou dirigir a fúria de fanáticos contra as instituições da República e do Estado de direito. É uma data para ser lembrada, para que a democracia nunca mais seja ameaçada pela barbárie que conspira contra as diferenças de opinião, a cidadania de fato, a sustentabilidade e a soberania do país.
Veja o artigo na íntegra também no portal Ciência Hoje.