O caso Alyne Pimentel e o Direito à Saúde no Brasil

Por Aline Albuquerque S. de Oliveira (*)

O Caso Alyne Pimentel é a primeira denúncia sobre mortalidade materna acolhida pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, doravante denominado Comitê, incumbido de monitorar o cumprimento pelos Estados-parte da Convenção relativa aos Direitos das Mulheres, adotada pelas Nações Unidas em 1979. Além do tema, mortalidade materna, ser um elemento diferencial do Caso, o fato de ser a única “condenação” do Estado brasileiro proveniente de um órgão do Sistema Universal de Direitos Humanos também demonstra sua especificidade e relevo para a comunidade nacional e internacional que lida com a proteção dos direitos humanos.

O Caso Alyne Pimentel em virtude de apresentar aspectos particulares que lhe conferem a qualidade de um caso paradigmático, porquanto diz respeito à morte de uma mulher – gestante, jovem, afrodescendente, e de baixa renda – decorrente de ausência de assistência médica adequada, fato que não foi posteriormente apurado, cujo processo judicial relativo à responsabilização civil do Estado ainda se encontra em trâmite, decorridos quase dez anos após o episódio, embora haja uma decisão de primeira instância. O Caso Alyne Pimentel trouxe à tona a problemática da morte materna, enquanto violação do direito humano à saúde, que se reflete na razão de mortalidade materna no Brasil: 64.8 por 100.000 nascidos vivos (1) . Ainda distante da razão de 35 por 100.000 nascidos vivos, meta apontada pelos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2) , assim como da realidade de outros países do continente Americano, como, por exemplo, Cuba, que apresenta 43.1; Canadá, 6.5; Estados Unidos, 12.7; Argentina, 55; Chile, 16.6 (3) . Como se nota, a alta taxa de mortalidade materna demonstra que os esforços empreendidos pelo Estado brasileiro com vistas a evitar a mortalidade derivada da maternidade, o que inclui o acesso a serviços qualificados de parto, atenção obstétrica de emergência, educação e informação sobre saúde sexual e reprodutiva, além de outros (4), ainda não lograram reverter o quadro situacional de saúde das mulheres no Brasil, embora se reconheça que foi registrada redução da morte materna desde 1990 (5) .

Nos últimos anos, foi-se expandindo o entendimento conceitual da mortalidade derivada da maternidade como uma expressão dos direitos humanos, especificamente enquanto conteúdo do direito ao desfrute do mais alto nível de saúde física e mental (6), previsto no art. 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado e internalizado pelo Estado brasileiro. Igualmente, a morte materna evitável consiste em violação à dignidade humana intrínseca da mulher, assim como flagrante injustiça social (7) . Tal entendimento impele à integração do direito à saúde na formulação de políticas e programas públicos de enfrentamento à mortalidade materna. Nesse sentido, importante destacar a Resolução n. 11/8, expedida pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, sobre mortalidade e morbidade materna evitável e direitos humanos, na qual o órgão de direitos humanos afirma que a alta taxa inaceitável de mortalidade materna e morbidade é um desafio de saúde, direitos humanos e desenvolvimento.

Especificamente, no Caso Alyne, o Comitê decidiu que o Estado brasileiro violou o direito ao acesso à saúde; o direito ao acesso à justiça; e o direito a ter as atividades dos serviços privados de saúde regulados pelo Estado, conjuntamente com o direito a não ser discriminada. Segundo o Comitê, a morte de Alyne Pimentel caracteriza-se como relacionada a complicações obstétricas vinculadas à gestação, observado que o profissional de saúde que realizou seu primeiro atendimento falhou ao não se certificar imediatamente da morte do feto, registrando-se que os testes de urina e sangue foram realizados dois dias depois do primeiro atendimento, e a curetagem, 14 horas após o parto. Em suma, conforme o Comitê, tal morte pode ser classificada como materna. Quanto ao fato da Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória ser privada, para o Comitê o Estado é diretamente responsável pelos serviços prestados por instituições privadas de saúde, existindo o dever estatal permanente de regular e monitorar as instituições privadas de saúde. Ainda, de acordo com o Comitê, a ausência de serviços apropriados de saúde materna, dirigidos ao atendimento de objetivos específicos e particulares, demandas em saúde no interesse da mulher, constitui, além de violação ao direito à saúde, discriminação contra a mulher. Para o Comitê, além de Alyne Pimentel ter sofrido discriminação por ser mulher, também o foi por ser afrodescendente e pertencer à camada da população de baixa renda. Por fim, o Comitê reconhece que o Estado brasileiro não assegurou proteção judicial efetiva e remédios jurídicos apropriados, acentuando que nenhum procedimento foi iniciado contra aqueles que causaram diretamente a morte de Alyne Pimentel, bem como a ação indenizatória, interposta em 2003, ainda não havia sido julgada. Em referência a tal ponto, o Comitê entendeu que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de assegurar proteção e ação judicial efetiva.

As recomendações feitas pelo Comitê ao Estado brasileiro foram sete, sendo uma de natureza compensatória, na qual prevê que o Estado brasileiro deve indenizar a mãe e a filha de Alyne Pimentel; três concernentes a políticas públicas de saúde: i. assegurar o direito da mulher à maternidade saudável e o acesso de todas as mulheres a serviços adequados de emergência obstétrica; ii. realizar treinamento adequado de profissionais de saúde, especialmente sobre direito à saúde reprodutiva das mulheres; iii. reduzir as mortes maternas evitáveis, por meio da implementação do Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna e da instituição de comitês de mortalidade materna; três recomendações que dizem respeito à accountability: i. assegurar o acesso a remédios efetivos nos casos de violação dos direitos reprodutivos das mulheres e prover treinamento adequado para os profissionais do Poder Judiciário e operadores do direito; ii. assegurar que os serviços privados de saúde sigam padrões nacionais e internacionais sobre saúde reprodutiva; iii. assegurar que sanções sejam impostas para profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres.

O dever de reparação integral do Estado brasileiro

A responsabilidade internacional do Estado brasileiro assentada pelo Comitê em sua Comunicação de nº 17/2008, ampara-se na adesão voluntária do referido Estado ao Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, promulgado pelo Decreto nº 4.316, de 30 de julho de 2002. Sendo assim, nos termos do artigo 7º do Protocolo Facultativo sobredito, o Comitê examinará as comunicações feitas por indivíduos ou grupos de indivíduos e transmitirá suas opiniões a respeito, juntamente com sua recomendação, se houver, às partes em questão. No que toca ao Estado, ele dará a devida consideração às opiniões do Comitê, juntamente com as recomendações deste último, se houver, e apresentará ao Comitê, dentro de seis meses, resposta por escrito, incluindo informações sobre quaisquer ações realizadas à luz das opiniões e recomendações do citado Comitê.

Como assinalado, a violação das obrigações internacionais do Estado ensejam o dever de reparação, ou seja, é princípio basilar do Direito Internacional dos Direitos Humanos aquele que estabelece o dever estatal de reparar dano causado pela violação dos comandos normativos expressos nos tratados internacionais de direitos humanos. Então, a violação do Direito Internacional dos Direitos Humanos acarreta a responsabilidade internacional do Estado. Em outros termos, uma vez configurada a infringência de obrigação prevista em normativa internacional de direitos humanos de natureza jurídica vinculante, por ação ou omissão, tem-se a constituição do ilícito internacional. Conforme o Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas denominado “Responsabilidade dos Estados por fatos internacionalmente ilícitos” (8) , a responsabilidade do Estado constitui-se quando a ação ou omissão é atribuível ao Estado, legalmente ancorada, e há o descumprimento da obrigação internacional. Caracterizado o fato ilícito internacional há o surgimento de relação jurídica entre o Estado e aquele cujo direito foi lesado, conseguintemente, o dever de reparação do Estado e o direito de ser reparado daquele que sofreu o dano.

Nessa linha, o Estado brasileiro está, haja vista sua aderência formal à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, obrigado a realizar a reparação integral por qualquer dano, material ou imaterial, decorrente de conduta ilícita a ele imputável no âmbito da referida Convenção. Dessa forma, no presente caso tem-se a assunção, por órgão constituinte do Sistema Universal dos Direitos Humanos, da violação das obrigações do Estado brasileiro previstas no artigo 1, artigo 2 (c), acesso à justiça, artigo 2 (e), relacionado ao dever do Estado de regular as atividades dos servidores privados de saúde, e artigo 12, concernente ao acesso à saúde, todos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Em consequência, o Comitê emitiu as recomendações acima apontadas.

Não obstante as recomendações assentadas por órgão internacional de monitoramento dos direitos humanos não apresentarem natureza jurídica judicial, há entendimento pacífico de que o Comitê insere-se no rol dos mecanismos convencionais quase judiciais, que agem ex post facto, mediante a constatação de violações de direitos humanos que acarretam a “fixação vinculante de determinada reparação” (9). Assim, como os treaty bodies ou órgãos baseados em tratados não são judiciais e suas decisões não consistem em sentenças, são classificados como quase judiciais. Tendo em conta que os tratados correlatos aos comitês em tela não são explícitos no que toca à força vinculante de suas deliberações, há três correntes sobre tal matéria. A primeira advoga que, em razão da ausência de disposição expressa nos tratados internacionais sobre esse tópico, seu caráter é não vinculante e não coercitiva (10). Por outro lado, outra vertente sustenta que a interpretação na seara dos direitos humanos deve ser feita a partir do incremento da carga protetiva da pessoa humana, bem como alega que se o Estado optou pela adesão ao sistema de petições, as recomendações devem ser enquadradas como deliberações vinculantes. A terceira corrente defende o que não obstante as recomendações não terem natureza jurídica vinculante, porquanto não há essa previsão nos tratados internacionais de direitos humanos nesse sentido, cabe ao Estado considerar as recomendações dos órgãos de direitos humanos e envidar o máximo de esforços no sentido de efetivá-las, pois, à luz da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé, depreendendo-se que a alegação da ausência de coerção das deliberações dos órgãos quase judiciais não é suficiente para afastar o dever dos Estados de atendê-las. Desse modo, insta assinalar que o Estado brasileiro adotou a posição de que, tendo em consta sua adesão ao sistema de petições, detém a obrigação internacional de reparar a violação de direitos humanos indigitada pelo Comitê. No que toca às reparações provenientes de violações de direitos humanas, registre-se que o documento “Responsabilidade dos Estados por fatos internacionalmente ilícitos” assenta, em seu artigo 31, a obrigação estatal de reparar o dano, material o imaterial, proveniente do ilícito internacional cometido por ele. Reparação significa a adoção de medidas endereçadas a fazer desparecer os efeitos da violação cometida, se desdobra em quatro espécies: restituição, indenização ou reparação compensatória, satisfação e reabilitação. No Caso Alyne Pimentel, o Comitê, em sua recomendação, faz alusão à reparação em sentido amplo e especificamente à compensatória, proporcionalmente às violações constatadas. Em decorrência de sua natureza quase judicial, o Comitê se absteve de fixar os valores atinentes à indenização a ser paga pelo Estado brasileiro e tão somente estabeleceu, de modo geral, que cabe a tal Estado prover reparação, sem especificar o quantum.

Sendo assim, considerando que o Estado brasileiro deve envidar todos os esforços visando ao atendimento da recomendação do Comitê, inclusive o de reparar os danos ocasionados pela violação das obrigações concernentes ao direito à saúde e ao direito ao acesso à justiça, o Estado brasileiro pagou indenização à mãe de Alyne Pimentel e à sua filha, demonstrando, assim, seu compromisso efetivo com o Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos.

Notas

(1)  Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2010/C03b.htm.

(2) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: relatório de acompanhamento. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/100408_relatorioodm.pdf., Acesso em: 20 fev. 2014.

(3) Pan American Health Organization. (2011). Health situation in the Americas. Basic Indicators. Disponível em: Acesso em: 4 jun. 2012, de http://ais.paho.org/chi/brochures/2011/BI_2011_ENG.pdf.

(4) Hunt, P. Report to the General Assembly (Main focus: The right to health and the reduction of maternal mortality). Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/Issues/Health/Pages/AnnualReports.aspx. Acesso em: 20 fev. 2014.

(5) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: relatório de acompanhamento. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/100408_relatorioodm.pdf., Acesso em: 20 fev. 2014.

(6) Hunt, P. Report to the General Assembly (Main focus: The right to health and the reduction of maternal mortality). Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/Issues/Health/Pages/AnnualReports.aspx. Acesso em: 20 fev. 2014.

(7) Yamim, A E. Maine, D.E. Maternal Mortality as a Human Rights Issue. In: Gruskin, S. et al. Perspectives on health and human rights. New York: Routledge, 2005.p. 427 – 467.

(8) International Law Commission. Draft articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts, with commentaries. Disponível em: http://untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/commentaries/9_6_2001.pdf. Acesso em: 13 ago. 2012.

(9) RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 85.

(10) RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 85.

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(*) Aline Albuquerque S. de Oliveira é  doutora em Ciências da Saúde, professora da Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília (UnB) e  advogada da União na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República