Como reduzir abortos tardios: Cebes debate desafios da assistência
Especialistas relatam obstrução do atendimento. Procedimento é seguro e poderia ser feito em UBS, reduzindo a quase zero os abortos tardios
A cada dois minutos, uma brasileira é estuprada. Apenas 8,5% dos casos chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Se 5% destes 882 mil estupros resultarem em gravidez, são 40 mil gestações apenas por violência sexual. Apesar disso, somente 2 mil chegam aos serviços de aborto legal no Brasil.
Frente à ameaça de criminalização das vítimas de estupro e profissionais da assistência, prevista no Projeto de Lei 1904/2024, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) recebeu, nesta segunda-feira, 24/6, os médicos obstetras de serviços de aborto legal Helena Paro, integrante da Rede Médica pelo Direito de Decidir e da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), e Olímpio Moraes, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM-UPE). Assista, no canal do Cebes, a íntegra do programa, com mediação da diretora-executiva Ana Costa.
Por que o acesso é tão difícil no Brasil, apesar da previsão legal nos casos de estupro, anencefalia e risco de morte materna? Quem são as mulheres e crianças que chegam ao serviço de aborto legal? Mais de 90% dos atendimentos são de vítimas de estupro, e a maioria delas são crianças até 13 anos. Algumas foram violadas por parentes e não entendem sequer como uma gravidez acontece. Para os especialistas, a demora é um projeto político. O atendimento, clinicamente simples, poderia ser feito com segurança nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) nos estágios iniciais, mas é postergado deliberadamente pelo lobby antiaborto.
O Projeto de Lei 1904/2024 propõe a criminalização do aborto após 22ª semana gestacional, punindo profissionais de Saúde e vítimas de estupro com penas de até 20 anos, superior à do estuprador. Quem chega a essa idade gestacional sem assistência são crianças e mulheres nas situações mais vulneráveis.
“A gente não quer que ninguém ultrapasse 22 semanas. Os casos mais avançados são eles mesmos que provocam. Obstruem, de forma antiética, o acesso ao abortamento precoce. Nenhuma menina estuprada, nenhuma mulher estuprada, tem o sadismo de querer manter essa gravidez por mais tempo. Ela quer ajuda. Eles querem ter um ponto a partir do qual o aborto é proibido, para conseguirem e organizar e obstruir [o atendimento] até aquele ponto”, afirma Olímpio, diretor médico da Universidade de Pernambuco.
“As mulheres não são tratadas como seres humanos. Eu tenho muita vergonha”, se emociona o veterano, citando casos de crianças que chegaram com gestação avançada após serem enclausuradas pelo judiciário em Santa Catarina e no Espírito Santo para retardar a interrupção da gravidez resultante de estupro. “Eu sou contra o aborto, é por isso eu acredito na ciência para diminuir o número de abortos”, afirma o obstetra.
Menos de 4% dos municípios brasileiros têm serviços especializados em interrupção gestacional com a composição multiprofissional preconizada pelo Ministério da Saúde. “O que eu aprendi, nesses sete anos de serviço de aborto legal, é que muito do sofrimento relacionado ao cuidado tem mais a ver com as violências que as meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar sofrem, desde a violência sexual e até às violências institucionais do sistema de Saúde e do sistema de Segurança Pública”, afirma a professora Helena Paro.
Quem o PL 1904 criminaliza – “Quem chega para a gente [com gestação avançada] é uma menina de 11 anos, com lacinho de fita amarela na cabeça, estuprada pelo padrasto, na zona rural do interior de Minas Gerais. Uma menina grávida que não sabe como uma mulher engravida. Quando é perguntada, ela responde: ‘Eu vou aprender isso na escola no ano que vem’. Essa é a cara de uma menina que o Projeto de Lei 1904 tenta criminalizar”, conta Helena.
“Quem chega ao serviço de aborto tardio é uma mulher que não quer morrer“, conta a obstetra. “Uma mulher de 30 anos, com um diagnóstico de câncer de tireoide avançado, que não foi resolvido com a retirada total da tireoide. Essa mulher, mãe de um menino de 4 anos, ao realizar os exames para iniciar a radioterapia e a quimioterapia, incluindo o beta hcg, descobre uma gravidez e escuta do hospital oncológico que só poderá voltar depois de 9 meses. Essa mulher teve que sair da capital do Rio de Janeiro para ser atendida no interior de Minas, porque não teve acesso ao assistência”, relata.
Os casos de anenfecalia e má-formações incompatíveis com a vida muitas vezes são diagnosticados tardiamente, pois as mulheres não têm acesso a ultrassonografia no primeiro trimestre. “O médico tem dificuldade em dar um diagnóstico sombrio, há tendência a postergar”, afirma Helena, lembrando que são gestações desejadas. “Convido todos a lerem o relato de Alessandra Tosi sobre o aborto legal, por síndrome incompatível com a vida. Ela diz, de forma contundente: ‘Não fui eu que quis esperar seis meses, foi o sistema’“.
Interrupção da gestação por permissivos legais poderia ser feita na Atenção Primária à Saúde (APS) – Helena Paro reforça que a interrupção da gravidez é 14 vezes mais segura que o parto vaginal, quando realizada ou orientada por profissional qualificado. “É claro que o aborto é mais seguro no início da gravidez, mas mesmo após as 22 semanas, o aborto assistido é mais seguro que o parto”, lembra. “O que mata”, ressalta a obstetra, “é o aborto inseguro. Não necessariamente os abortos clandestinos, porque as mulheres com recursos têm abortos seguros, mesmo ilegais. As mulheres pretas, pobres, pardas, as que moram distante dos centros urbanos são as que morrem”, afirma Helena.
Olímpio critica a ausência de medicamentos básicos, recomendados para o abortamento precoce e seguro, na Atenção Primária à Saúde (APS). No Brasil, o misoprostol está restrito a maternidades. O medicamento, encontrado clandestinamente nas ruas de grandes centros, tem eficácia de 80% na indução de aborto no primeiro trimestre. As evidências científicas apontam para a administração combinada com o mifepristone, também indisponível.
Nos casos em que há necessidade de assistolia fetal, a assistência também é dificultada pela indisponibilidade deliberada de medicação básica. “Só tem cloreto de potássio”, critica o médico. Segundo Olímpio, com medicação adequada, a indução da assistolia poderia ser feita por obstetra, sem necessidade de ter um especialista em medicina fetal e ultrassonografista.
Ódio politicamente organizando – Os obstetras criticaram o obscurantismo ético e científico do Conselho Federal de Medicina. A resolução CFM 2.378/2024, suspensa judicialmente por abuso do poder regulamentador e distanciamento da ciência, está na origem do PL 1904/2024.
“Temos um Conselho Federal de Medicina que desonra toda a história do CFM, que sempre lutou pela democracia, pela ética, pelos direitos humanos e pela ciência“.
“Nos últimos anos, o CFM se afastou deste objetivo, que é sua obrigação, de defender a sociedade, defender a medicina. Nosso código de ética médica é muito claro. É obrigação do médico oferecer as melhores evidências científicas”, afirma Olímpio, que lamenta a ascensão, ao conselho profissional, do “ódio politicamente organizado contra a ciência e contra a mulher”.
Para Helena Paro, o CFM se afasta pilares éticos da profissão: respeito à autonomia do paciente, primazia do bem-estar do paciente e luta pelo bem-estar social. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) recomendam que seja considerada a indução da assistolia fetal para aborto induzido após a 20ª semana gestacional. Em nota técnica, a FIGO afirma que a Resolução CFM 2.378/2024 é antiética, contraria todas as evidências médicas disponíveis, impede o acesso a cuidados de qualidade e afetará negativamente os indicadores de Saúde.
Reportagem Clara Fagundes/Cebes