Drogas psiquiátricas: como começou o pesadelo

Há décadas, indústria farmacêutica passou a ter o crescimento de seu mercado como único norte. Seminário na Fiocruz debate: como enfrentar a epidemia de drogas, em especial na psiquiatria, que surgiu dessa virada? Confira artigo de Paulo Amarante, ex-presidente do Cebes, no Outras Palavras

Quando o Prozac foi lançado na década de 1980 do século passado, a propaganda associada a ele prometia tratar-se de uma droga que produzia felicidade. O medicamento não mais era apresentado, como eram seus antecessores, como um tratamento da depressão ou uma ferramenta para a supressão do sofrimento mental, mas como uma substância capaz de produzir um estado de bem-estar assemelhado a um estado de felicidade. 

Com o impacto social que este medicamento teve, a partir de uma agressiva campanha não apenas nas publicações e meios científicos, mas também nas mídias de massa, como a grande imprensa e a televisão, o medicamento logo se tornou um componente obrigatório das farmácias domésticas e das rodas de conversa entre amigos, familiares e colegas de trabalho. 

O lançamento do Prozac no Brasil ocorreu durante um congresso de psiquiatria realizado em São Paulo, na casa de espetáculos Olympia, que ficou lotada de psiquiatras convidados para um jantar oferecido pela indústria farmacêutica. A apresentação artística do evento incluía um desfile de sambistas vestidas com biquínis insinuantes onde se lia, na parte de trás, o nome do medicamento em lâmpadas de gás neon azul! 

Aquela década demarcou uma mudança de rota na estratégia da indústria farmacêutica, que deixou de produzir os medicamentos para tratar doenças, e “produzir saúde”, passando a ser orientada por uma política de mercado. Em outras palavras, à política de saúde se sobrepôs uma política de mercado em que o importante é vender mais medicamentos, mesmo que isso implique em “inventar doenças” (disease mongering, termo utilizado pela médica e editora científica Lynn Payer), inventar evidências para comprovar os efeitos benéficos dos medicamentos, ou omitir efeitos colaterais e indesejáveis. 

Alguns anos depois, Marcia Angell, professora da Escola de Medicina de Harvard e ex-editora do conceituadíssimo periódico New England Journal of Medicine, lançou o livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos – com o revelador subtítulo “como somos enganados e o que podemos fazer a respeito” –, que contém informações surpreendentes sobre esta nova orientação da indústria farmacêutica. Com dados muito bem fundamentados e confiáveis, Angell demonstra como os laboratórios manipulam pesquisas e “convencem” centros de pesquisas públicos, editores científicos, médicos, professores e demais formadores de opinião a aprovar e divulgar os medicamentos surgidos desses estudos. Nos EUA, afirma ela, existe um domínio do Congresso e da Casa Branca por parte da Big Pharma. É o que poderíamos denominar de uma verdadeira Bancada da Bula!

A epidemia chega à psiquiatria

No âmbito mais específico da psiquiatria, veio na sequência da obra de Angell o premiado livro Anatomia de uma epidemia, de Robert Whitaker, jornalista especializado no tema da saúde mental e drogas psiquiátricas. Em poucos dias, Whitaker participará do 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, que ocorrerá na Fiocruz nos dias 5 e 6 de dezembro, abordando um dos temas mais críticos relacionados à questão dos medicamentos psiquiátricos. 

Nos anos recentes, vêm crescendo as evidências de que as substâncias psicoativas prescritas, ou seja, as drogas psiquiátricas receitadas pela psiquiatria, produzem consequências muito graves nas pessoas que as consomem. A primeira revelação do livro de Whitaker diz respeito ao fato de que os efeitos positivos dos fármacos só são identificados em estudos quando eles são usados de maneira muito restrita e por pouco tempo. 

Como se pode depreender da revisão de Whitaker, mas também das observações de pesquisadores acadêmicos como Irving Kirsch, Jaakko Seikkula, Joanna Moncrieff, David Healy, Peter Breggin, Peter Gøtzsche, dentre muitos outros, a grande maioria das pesquisas destaca apenas os resultados benéficos nos primeiros meses de uso, e não aborda as consequências do uso prolongado dos medicamentos. E, de acordo com tais autores, com o uso prolongado observa-se uma diminuição dos efeitos considerados positivos e o crescimento de efeitos nefastos.

Um deles é a tolerância, isto é, a necessidade de consumir mais medicamentos para se obter o mesmo resultado anterior. Outro, diz respeito ao surgimento de sintomas de abstinência quando se interrompe o uso da substância. Pesquisas recentes têm enfatizado este problema como uma grave questão de saúde pública, na medida em que se estimula cada vez mais o consumo de tais medicamentos e são pouquíssimos os profissionais que sabem administrar a retirada, ou desmame, de tais substâncias. 

A falta de conhecimento da questão e de formação no manejo da retirada de substâncias tem sido uma das questões mais desafiadoras do nosso tempo, na medida em que o  tema é negado e evitado nos espaços onde a indústria farmacêutica impõe sua visão. Isso se reflete na inexistência de profissionais adequados e capacitados para tanto. Vários artigos publicados em revistas científicas vêm abordando este enorme desafio que é a retirada das drogas psiquiátricas; considerado até mesmo maior quando comparado à retirada das denominadas drogas lícitas e ilícitas. Os livros de Peter Breggin (2008), Swapnil Gupta e colaboradores (2019), Peter Lehman e Craig Newnes (2020) e Marcello Maviglia e colaboradores (2021) são alguns dos que refletem sobre essa preocupante situação. 

Em 2017, foi criado o Instituto Internacional para Retirada das Drogas Psiquiátricas, reunindo uma expressiva parcela dos profissionais que vêm se dedicando a esta grave situação de saúde pública, que se resume no processo flagrante e determinado de patologização da vida – descrito e denunciado também por Allen Frances, nada menos que o psiquiatra que coordenou o grupo-tarefa que elaborou a versão IV do DSM. Esse processo não deixa de contar com franco e descarado envolvimento da indústria farmacêutica, como também apresenta Robert Whitaker em seu último livro, Psychiatry Under the Influence: Institutional Corruption, Social Injury and Prescriptions for Reform, ainda sem edição no Brasil.

É necessário que os profissionais realmente comprometidos com a saúde coletiva, assim como as instituições e organismos de defesa da vida e dos direitos da sociedade tomem consciência desta questão e passem a atuar para frear e reverter este processo.

REFERÊNCIAS

  • ANGELL, Marcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Record, 2007 [2004]. 
  • BREGGIN, Peter. Retirada de medicamentos psiquiátricos: um guia para prescritores, terapeutas, pacientes e suas famílias. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 2008
  • FRANCES, Allen. Saving normal: an insider revolts against out-of-control psychiatric diagnosis, DSM-5, big pharma, and the medicalization of ordinary life. New York: William Morrow, 2012.
  • GØTZSCHE, Peter. Kit de sobrevivência em saúde mental e retirada dos medicamentos psiquiátricos. Instituto para a Liberdade Científica, 2020. MIB, on line.
  • GUPTA, Swapnil; CAHILL, John; MILLER, Rebecca. Deprescribing in Psychiatry. Oxford University Press, 5 de ago. de 2019.
  • KIRSCH, Irving, The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth. New York: Basic Books [Kindle File]., 2010.
  • LEHMANN, Peter & NEWNES, Craig. Withdrawal from Prescribed Psychotropic Drugs. Withdrawal from Prescribed Psychotropic Drugs. Suíça: Peter Lehmann Publishing, 2021.
  • MAVIGLIA, Marcello; GUERRA Laura & GANDOLFI, Miriam. Sospendere gli psicofarmaci: come e perché – Costruire un percorso personalizzato ed efficace. Milano: Fabbrica dei segni, 2024
  • MONCRIEFF, Joanna. Persistent adverse effects of antidepressants. Epidemiology and Psychiatric Sciences, [s. l.], v. 29, p. 1–-2, 2020.

PAYER, Lynn. Disease-mongers: How doctors, drug companies, and insurers are making you feel sick. New York: Wiley and Sons. 1992, 292 p. In. BERENSTEIN, E. Disease mongeringe os hormônios, acesso na internet Monography em Pt | LILACS | ID: lil-160326

WHITAKER, Robert. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. WHITAKER, Robert; COSGROVE, Lisa. psychiatry under the influence. Institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. New York: Palgrave Macmillan, 2015.