Os corpos das mulheres pertencem ao Estado?
Por Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira* e Michelle Morais de Sá e Silva**/ publicado na Agência Carta Maior
Em Torres/RS, policiais armados retiraram uma mulher em trabalho de parto de sua casa. O caso diz muito sobre a obstetrícia brasileira.
No país em que a obstetrícia é campeã mundial em proporção de cirurgias cesarianas, já se sabe que as mulheres que optam pelo parto natural têm que desafiar inúmeros protocolos e arraigadas práticas médicas, além de preconceitos e muita falta de informação. Mesmo quando conseguem um parto vaginal são, não raro, submetidas a um rol de violências obstétricas, sem contar as intervenções desnecessárias que seu filho sofre logo após o nascimento. A mulher não é enxergada como a protagonista do momento – muito pelo contrário, parece mero repositório.
Em 01 de abril de 2014, este cenário dantesco conseguiu ficar pior. Ocorreu em Torres, Rio Grande do Sul, um caso que será lembrado não apenas pela violência e pela violação de direitos nele envolvidas, mas principalmente pelo respaldo a ele dado pelas instituições do Estado. Naquela noite, uma mulher em pleno trabalho de parto foi retirada de seu domicílio e levada por dez policiais armados a um hospital, onde foi obrigada, mediante mandado judicial, a se submeter a uma cesárea indesejada e possivelmente desnecessária. Adelir Carmem Lemos de Goes, mulher empoderada que se informou e buscou superar as violências obstétricas já sofridas em partos anteriores, teve mais uma vez usurpado o direito de decidir como seu corpo daria à luz sua filha.
O caso diz muito sobre a obstetrícia brasileira. E diz ainda mais sobre como o Estado e a sociedade brasileira continuam a perceber e a tratar as mulheres deste país. É curioso – e chocante – que em tão poucas horas membros de importantes segmentos e instituições – o corpo médico, o Ministério Público, a magistratura e as forças de segurança – tenham se mobilizado para tal.
A polêmica gerada tem um grande potencial para se perder em meio a uma guerra de argumentos médicos, que, de um lado e de outro, podem corroborar ou contrariar a afirmação de que haveria risco para mãe e filha. O fato é que, justamente porque parte do poder médico advém das informações que eles controlam e dos julgamentos que eles nos apresentam (muitas vezes sem qualquer justificativa para determinada tomada de decisão), nunca se saberá, ao certo, se o bebê estava realmente pélvico e se, mesmo que estivesse, isso oferecia um risco significativo. Por isso, este artigo lembrará apenas que, pelo menos em Brasília, não têm sido incomuns os partos naturais pélvicos, assim como os partos naturais posteriores a uma ou a duas cesáreas. Alguns deles, inclusive, realizados em domicílio, a fim de se fugir não apenas das violências hospitalares contra as mulheres, mas também das intervenções desnecessárias nos bebês.
Para além do que diz ou não a evidência científica, o caso choca ainda mais pela postura inabalável e resoluta dos representantes do Estado em tomar o corpo daquela mulher e forçá-la a uma cirurgia à qual ela se recusava. Choca o fato de decisão tão importante ter sido tomada em caráter liminar (apesar de terminativa) sem conceder a Adelir o exercício do contraditório e o direito de apelar a instâncias superiores da justiça. Choca o fato de uma juíza conceder liminar em caso tão grave sem questionar a posição médica, não solicitar outras opiniões e exames (que podem ser realizados rapidamente) e – mais importante- sem ouvir Adelir.
O dano causado é agora irreparável, uma vez que a cesárea já foi feita. Mais uma mãe que sofre por não poder conduzir o seu parto; mais uma criança que sofre por não poder nascer após um trabalho de parto que a prepare para o mundo. Foram violados direitos fundamentais, direitos reprodutivos. Foram violados princípios da bioética, que traduzem as ideias de priorização do paciente e respeito às suas opiniões. Foi violado o corpo de uma mulher.
Se ainda agora as opiniões médicas sobre o caso não são unânimes ou conclusivas, como pode ter se tornado a “justiça” tão rapidamente convicta de que a mulher deveria ser submetida à cesariana? E, ainda mais, por que o Estado seria detentor de melhor juízo e do direito de decidir por ela? A visão hospitalocêntrica da saúde e a percepção de que o discurso da autoridade médica é inquestionável e é o “melhor para o paciente” permeiam o imaginário do sistema de saúde brasileiro, colocando o parto como “doença” ou como “conveniência” e retirando-o totalmente do seu lugar natural que é o seio familiar e, mais precisamente, das mãos da mulher.
Adicionalmente, o caso coloca em evidência a percepção de que a sociedade brasileira e as instituições que a organizam ainda funcionam sobre uma estrutura profundamente patriarcal e machista, cuja lógica é de que o corpo feminino não passa de mero veículo para os herdeiros que receberão a tarefa de manter este mesmo estado de coisas. Como pode a mulher não ter direito ao seu próprio corpo e a decidir sobre as intervenções e procedimentos realizados sobre ele? Como se pode falar em dignidade humana – princípio maior da nossa Constituição Federal – quando se retira de seu domicílio, com a presença de dez policiais armados, uma mulher em pleno trabalho de parto? A sua integridade física e psíquica foi violentada; a sua autonomia sexual e reprodutiva sofreu coerção do Estado – em profunda violação à Carta Magna e a tratados internacionais. Reforça-se a ideia de que o corpo feminino é de domínio público e que a mulher não possui capacidade para decidir sobre ele.
Piores ainda são os prognósticos que este caso traz para o futuro. Ele gera um precedente bastante poderoso, e perigoso, para a legião de médicos que adorariam fazer apenas cesáreas, rápidas e caras, anulando o crescente movimento de mulheres que querem recuperar o direito sobre seus corpos e seus partos. Se médicos, promotores, juízes e policiais se unirem para tornar prática corrente o conjunto de violências observadas neste caso, o Brasil reforçará a sua permanência no clube internacional de violadores do direito da mulher – num percurso oposto aos países que atualmente enxergam o parto como momento único da mulher e da família, retirando-o cada vez mais do espaço hospitalar com políticas públicas de incentivo a casas de parto e a partos domiciliares. Porque cesárea forçada, mediante mandado judicial, não é uma prima muito distante de casamento arranjado, mutilação genital, e outros horrores que se veem pelo mundo.
* Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, especialista em Direito e Saúde pela Universidade de São Paulo, integrante do grupo O Renascimento do Parto, gestora governamental no Ministério da Justiça e mãe de três filhos (duas cesáreas prévias e um parto normal humanizado).
** Michelle Morais de Sá e Silva é PhD em Educação Comparada Internacional pela Columbia University (Nova Iorque), mestre em Estudos sobre o Desenvolvimento pelo Institute of Social Studies (Haia, Holanda) e graduada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. É gestora governamental e mãe de dois filhos (dois partos normais, tendo o segundo sido domiciliar).