Peruanas tentam punir culpados por esterilizações forçadas no país

Sylvia Colombo/ Folha de São Paulo

Estima-se que política da era Fujimori tenha afetado 340 mil, na maioria indígenas e pobres

Mulheres e familiares relatam trauma sofrido; para promotor, não há elementos para culpar ex-ditador diretamente
Numa tarde quente de abril de 1996, as dores que Victoria Vigo sentia na barriga se intensificaram. Tinha 32 anos e estava grávida do terceiro filho. Internou-se às pressas no hospital público Cayetano Heredia, em Piura, no Peru.

“Acordei e logo me deram as notícias: meu filho havia morrido e eu havia sido esterilizada. Não tinham pedido permissão para o procedimento”, diz em entrevista à Folha.

Após superar uma depressão, Victoria entrou na Justiça contra o médico Nicolás Angulo. “Na época, não sabia que era prática de Estado, então acusei só o doutor.”

Sete anos depois, ganhou a causa, mas não comemorou. A indenização que recebeu foi de apenas US$ 2.500. Já o médico seguiu atuando.

“Até então, eles haviam operado só indígenas ignorantes que nem sequer falavam bem o espanhol. Elas se resignaram. Depois que eu falei, várias se animaram a contar suas histórias”, afirma ela.

O caso de Vigo colaborou para descortinar a política de Estado que, desde 1995, levou sem consentimento à mesa de operações milhares de peruanas. As denúncias de esterilizações forçadas se somaram a partir de seu depoimento. Vinham principalmente de povoados indígenas longe dos grandes centros.

Jornais e TVs subiram os Andes e revelaram a correspondência de médicos com seus superiores dando conta do cumprimento de metas.

Finalmente, em 1998, divulgou-se o relatório “Nada Personal” (nada pessoal), elaborado pela advogada Giulia Tamayo, que dava conta de mais de 250 mil casos, reunindo depoimentos, vídeos dos procedimentos e documentos do Ministério da Saúde.

Às denúncias recolhidas por Tamayo foram somando-se outras até o fim da aplicação do programa, em 2000. Hoje, estima-se que o número esteja em torno de 340 mil. Além disso, há 18 mortes ligadas a negligência ou falta de condições de higiene para realizar os procedimentos.

‘DEMOCRATIZAÇÃO’

Nos anos 90, o Peru vivia a ditadura de Alberto Fujimori, que em 1992 dera um “autogolpe” e fechara o Congresso. Em 1993, o então ditador promulgou uma Constituição neoliberal, destacando o tema “planejamento familiar”.

Em 1995, Fujimori falou a um público internacional sobre seu plano para reduzir a pobreza e a alta taxa de fecundidade das mulheres peruanas. A ideia é que seria “democratizado” o acesso a procedimentos de esterilização.

“O Peru vivia os anos do terror do Sendero Luminoso e vinha de hiperinflação. Fujimori precisava neutralizar a pobreza e a tensão social, cujos focos estavam no interior”, diz à Folha Steven Levitsky, especialista em política peruana da Universidade Harvard.

Mãe de sete filhos, Mamérita Mestanza, 33, começou a ser procurada por médicos na província de Cajamarca, em 1996. Tentavam convencê-la a parar de engravidar. Segundo o marido, foram dez visitas, incluindo ameaças de cortar a assistência à família.

Por fim, Mamérita concordou e se submeteu à operação, em 27 de março de 1998. Teve uma infecção e morreu oito dias depois. A família foi à Justiça, mas o caso foi arquivado. Em 1999, organizações peruanas levaram o assunto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Em 2003, o Peru assinou acordo pelo qual o Estado reconheceu responsabilidade na violação dos direitos de Mamérita e se obrigou a adotar medidas pelas outras vítimas, além de julgar abusos.

Somente em 2014, porém, os cinco médicos envolvidos no caso de Mamérita foram acusados formalmente e agora enfrentarão julgamento.

Outro caso que virou bandeira da causa foi o de Celia Durand, habitante de Piura.

Aos 31 e mãe de três filhos, ela assistiu a um “festival de ligações [de trompas]”, festa macabra organizada pelos órgãos de saúde, e foi convencida a fazer o procedimento. Teve parada cardíaca e morreu. “Os doutores diziam que ela sairia dançando na mesma noite”, diz o marido, Jaime.

No caso de Celia, o governo admitiu a responsabilidade. O processo na Justiça, porém, segue em aberto, e a família espera indenização.

“Consentimento é o grande nó do problema. Em alguns casos, houve consulta esclarecida, mas, em geral, tratou-se de caçada em suas próprias casas. A maioria falava quéchua e entendia pouco ou nada de espanhol”, diz à Folha Alejandra Ballón Gutierrez, do grupo de direitos humanos Alfombra Roja.

Um dos ministros da Saúde de Fujimori, Alejandro Aguinaga, defende-se dizendo que os depoimentos das vítimas são falsos ou obtidos sob pagamento da oposição.

Num debate às vésperas da eleição de 2011, o hoje presidente Ollanta Humala trouxe o caso à tona e perguntou à sua rival –a filha de Fujimori, Keiko– o que faria em relação às esterilizações. A candidata vacilou. A intenção de voto em Keiko voltou a cair, e Humala venceu o pleito.

Desde então, vinha sendo bandeira do presidente condenar os responsáveis pela política. No último mês, porém, a Justiça anunciou um novo arquivamento do caso.

Segundo o promotor Marco Guzmán Baca, não há evidências que permitam levar adiante as acusações de crime sistemático de lesa-humanidade e de envolvimento direto do ex-ditador Fujimori.

“Com Humala isolado, o fujimorismo pressiona a Justiça. Por enquanto, o caso ficará assim, e a possibilidade de que siga sendo usado politicamente continua”, diz Levitsky.

SEQUELAS

Ouvidas pela Folha sem querer identificar-se, duas mulheres esterilizadas disseram não se importar com a questão judicial –o que querem é retomar a relação normal com suas comunidades.

“Desde 1996, quando fui esterilizada, meu marido me insulta, diz que fiz isso para andar com outros homens. As outras mulheres me chamam de puta e traidora da Pachamama”, diz uma moradora de Anta, província de Ancash.

Segundo a crença indígena, Pachamama é a mãe-natureza, e o papel das mulheres é difundir sua fecundidade. “Uma mulher infértil é uma anomalia, uma agressão a essa divindade”, completa.

Já outra peruana, da região de Piura, conta que as dores que sente na região da barriga ainda são insuportáveis. “Estou inválida. Não posso trabalhar no campo”, relata.

Vestida em trajes indígenaso, Hilaria Supa Huamán, 56, é a principal voz da causa das mulheres esterilizadas. Eleita para o Congresso em 2006, Supa insiste em que o papel de vítima não é suficiente. “Precisamos aprender a língua. Muitas mulheres aceitaram [a esterilização] por não conhecer seus direitos”, diz.

Advogados das vítimas e instituições criticam o arquivamento e irão à Corte Interamericana –para Jeannette Llaja, da ONG Demus, ele viola o acordo assinado em 2003.

“É um mundo muito machista, e essa causa junta tudo o que é excluído: mulheres, pobres, indígenas, Terceiro Mundo. Não tenho esperança de justiça rápida. Mas é importante seguir lutando”, completa Vigo.